Um rebelde com causa

Nome forte para a Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos vem ganhando espaço no cenário brasileiro a despeito daqueles que o julgam radical — ou sonhador — demais 

Por Nina Gattis

Conhecido por sua postura fortemente progressista, que muitas vezes faz torcer narizes, o deputado federal Guilherme Boulos segue firme em seu propósito. Neste ano que antecede as próximas eleições municipais, ele já desponta como um dos favoritos ao pleito em São Paulo —, mas não conta vantagem. Depois de bater na trave em 2020 e terminar a então disputa contra Bruno Covas com “gosto de vitória”, ele tem, por ora, o favoritismo na capital paulista, o que pode levá-lo a ser o próximo nome de liderança expressiva na esquerda brasileira a atingir a posição — que não é ocupada por alguém do mesmo espectro desde 2016, último ano do mandato do agora ministro da Fazenda, Fernando Haddad. 

Muito atarefado no Congresso Nacional — enumerou uma a uma as comissões de que faz parte —, Boulos encontra tempo para se manter crítico à gestão de Ricardo Nunes, atual prefeito de São Paulo. Mesmo de Brasília, mantém os olhos bem atentos à sua cidade natal, da qual carrega carinho e preocupação proporcionais.

Foi em São Paulo que, em 1982, nasceu filho caçula de médicos infectologistas e, alguns anos mais tarde, se formou na Universidade de São Paulo (USP), inicialmente como filósofo. Mesmo com uma infância financeiramente tranquila, mostrou tino pelas causas sociais desde cedo, algo que o persegue — ou acompanha — até hoje. Não tem pais militantes, a veia política caiu como um dom, mas foi sensibilizado por relatos trazidos ao lar por seus genitores. Marcos Boulos, o pai, dedicou a vida a estudar doenças tropicais em populações pobres e passou temporadas na Amazônia. Maria Ivete Castro Boulos, a mãe, ainda hoje coordena o Núcleo de Atendimento à Violência Sexual (Navis) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

O deputado costuma contar um episódio marcante que o define bem: quando criança, no Pacaembu, em um jogo do seu time do coração, o Corinthians, ficou profundamente ofendido ao ver que um menino em situação vulnerável, que vendia amendoim aos torcedores, apanhou da Polícia Militar no estádio. Já mais velho, aos 19 anos, optou por trocar a casa dos pais em Pinheiros, um dos bairros nobres de São Paulo, por um acampamento de pessoas sem-teto em Osasco, na Grande São Paulo. “Guilherme levou uma cama dobrável, um lampião e o porta-malas cheio de livros. Dizia que, para lutar por aquelas pessoas, tinha de viver como elas”, recordou sua mãe em entrevista ao portal de notícias Terra.

Com rosto que oscila entre rigor e afabilidade — fazendo sua tez mudar de traços com rapidez —, presença marcante e por demais eloquente, ele tem talento para, ao menos, ser ouvido. Pode não conquistar a simpatia de todos, mas não há quem não pare para escutá-lo. E foi o que fizemos.

Esfera Brasil: Como estão suas expectativas para as eleições de 2024? Já que é um dos favoritos ao cargo…

Guilherme Boulos: Eu serei candidato a prefeito no ano que vem como parte de uma frente progressista, para dar um novo rumo à cidade de São Paulo, que é a mais rica do Brasil, mas está completamente abandonada, sem projeto, sem planejamento. São Paulo parou no tempo. Cidades globais estão discutindo transição energética, redução de distâncias e cidades inteligentes, enquanto São Paulo não tapa nem buraco de rua. E não é por falta de dinheiro. A cidade tem o maior orçamento de sua história, com um caixa recorde de R$ 34 bilhões. É o apagão da gestão. E, por falta completa de um projeto do atual governo, serei candidato a prefeito no próximo ano.

E.B.: Agora, Ricardo Salles surge como um contraponto a você em São Paulo, quase como uma disputa de “Lula versus Bolsonaro” na cidade. Ele representa uma ameaça verdadeira à sua campanha?

G.B: No Brasil, polarizado como está, é natural que haja esse contraste nas eleições municipais. São Paulo deu um recado em 2022: Lula e Haddad ganharam aqui na capital, que é historicamente progressista, tanto que elegeu Luiza Erundina, migrante nordestina e primeira mulher a ser prefeita da cidade. São Paulo também já elegeu Marta Suplicy e Fernando Haddad, então acho que há espaço para que a gente tenha um bom resultado no ano que vem. Para mim, ainda não está claro se enfrentaremos a polarização contra Ricardo Salles ou contra o candidato da máquina, o prefeito Ricardo Nunes, que também é candidato à reeleição. Por mais que sua gestão esteja sendo mal avaliada, ele tem muito dinheiro em caixa. É aquela velha lógica de deixar a cidade maquiada para gerar uma boa impressão e ganhar dividendo eleitoral. Portanto, ainda está cedo. Vamos esperar para delinear qual vai ser a polarização na cidade.

E.B.: E sobre o vídeo vazado que mostra você e José Luiz Datena conversando? Acha que pode ter te prejudicado para o pleito de 2024?

G.B: O Datena é uma pessoa com quem tenho uma excelente relação pessoal. Ele expressou as pessoas opiniões dele, as quais ele tem toda a legitimidade e o direito de expressar. É lamentável, inclusive, que um vídeo de uma conversa privada tenha sido vazado da forma como foi. Mas acho que esse episódio está superado.

E.B.: Na ocasião, você disse que seu vice seria do Partido dos Trabalhadores (PT), mas há uma pressão do PT para que você se filie ao partido para obter o apoio da sigla em 2024. Seria o fim da era “Boulos no PSOL”? E quanto à ou ao vice petista, você pode nos adiantar o nome?

A ou o vice ainda não foi definido, mas eu estive na Executiva Municipal dialogando com o presidente do PT de São Paulo, Laércio Ribeiro, assim como com os parlamentares do partido, para que a gente busque encontrar soluções comuns para esses problemas. É natural que haja questionamentos, porque o PT sempre teve candidato a prefeito de São Paulo. E a preocupação de que isso possa impactar na chapa de vereadores é legítima também. Eu serei, sim, candidato pelo PSOL, mas não serei candidato de um partido. Espero ser o candidato de uma frente com PT, PCdoB, PV, Rede, PDT e, eventualmente, com outros partidos que podem se somar para que a gente construa uma frente, uma unidade que ponha São Paulo no rumo do combate à desigualdade social, reduza as contradições que nós temos entre centro e periferia e coloque São Paulo no século 21.

E.B.: Falando em PT: como você avalia o governo Lula até agora?

G.B: Eu acho que, nos primeiros quatro meses, Lula fez mais do que Bolsonaro em quatro anos. Bolsonaro tinha um projeto de destruição: destruiu políticas sociais, destruiu a capacidade de investimento do Estado brasileiro e destruiu programas e políticas públicas. Nestes primeiros quatro meses, Lula se dedicou a arrumar a casa. Recriou o Minha Casa, Minha Vida, o Bolsa Família, o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e o Mais Médicos. Veja, quando você lida com um país devastado, você precisa construí-lo. Eu estava na área de cidades na transição do governo. Quando nós recebemos os dados do governo anterior, era desesperador, porque, se não tivesse a aprovação da PEC da Transição, todas as obras de mobilidade, saneamento, urbanização e moradia teriam parado em fevereiro, porque o orçamento deixado pelo Bolsonaro para o ano todo dava para pagar janeiro. Lula está fazendo um processo de reconstrução, não só do ponto de vista da atuação do poder público, mas também da relação entre Poderes. Bolsonaro desgastou a relação, e Lula está reconstruindo o pacto democrático no País. Ele ainda tem três anos e meio de governo, e eu tenho certeza de que o Lula, com a habilidade política e o prestígio, inclusive internacional, que tem, vai conseguir realizar o projeto para o qual foi eleito.

E.B.: Qual sua opinião sobre o arcabouço fiscal? O PSOL não garantiu que apoiaria a nova regra e fez críticas a ela. Por quê?

G.B: Eu tenho muitas preocupações com a proposta da regra fiscal apresentada pelo Ministério da Fazenda. Primeiro: ela depende de um nível de crescimento econômico e aumento na arrecadação que não são garantidos. E se nós não tivermos? As regras fiscais colocadas deixam o governo de mãos atadas, reduzem a capacidade de investimento e obrigam cortes em áreas sociais. Segundo: ela ainda pode ser piorada na Câmara. Nós sabemos o que é o Congresso Nacional do Brasil. Você pode ter certeza de que uma coisa não acabará: emendas parlamentares. Mas o arcabouço pode piorar no sentido de tornar as regras fiscais mais rigorosas, de forma a incompatibilizar o cumprimento da responsabilidade social. A responsabilidade fiscal é importante, mas não sem responsabilidade social. É preciso ter uma articulação de ambas, e me preocupa o texto do arcabouço nesse sentido.

E.B.: E quanto à CPI do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): qual será o resultado? 

G.B: Nunca se sabe. Essa CPI não tem razão de ser, não tem um objeto. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito precisa ter um fato definido. O MST não é um fato definido. Pode-se dizer que o fato foi a ocupação do MST numa área produtiva da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]. Se for, o fato já perdeu o objeto, porque o MST já saiu dessa área. Isso me parece muito mais uma ofensiva da bancada ruralista para botar a faca no pescoço do governo do que qualquer tentativa real de investigar algum tipo de irregularidade. Já houve quatro CPIs no Congresso Nacional nas últimas décadas contra o Movimento Sem Terra, mas nenhuma delas encontrou algo. Parece que é mais uma tentativa de criminalizar o movimento, mas é preciso entender que, concordando ou não com a pauta, estamos em uma democracia, e as pessoas não podem criminalizar e tirar a legitimidade de um movimento social. Aliás, nós só temos democracia porque houve um movimento social chamado Diretas Já que levou milhões de pessoas às ruas. É por isso que a gente pode votar. É por isso que temos liberdade de expressão, de manifestação e de organização partidária.

E.B.: Inclusive, quais são as suas pautas prioritárias na Câmara?

G.B: Eu fui eleito por mais de um milhão de paulistas e estou trabalhando assiduamente para honrar esses votos. Nós apresentamos, a princípio, dois grandes projetos. Um é o Programa Cozinha Solidária, uma iniciativa de combate à fome na ponta, levando a alimentação vinda da agricultura familiar, pelo PAA, às periferias, onde estão os maiores bolsões de insegurança alimentar do Brasil. Inclusive, a Cozinha Solidária é um projeto que já existe, feito voluntariamente com recursos arrecadados em vaquinha virtual pelo MTST e que, agora, nós estamos transformando em política pública. Eu estou muito empenhado nesse projeto de lei. Acho que nós vamos conseguir.

O segundo tem a ver com a pauta em que eu atuo há muitos anos, que é a da moradia. Nós estamos ajudando a construir uma política nacional para a população em situação de rua. É só ver o drama aqui em São Paulo, com 52 mil pessoas morando na rua. É uma situação devastadora. Precisamos de uma política de atendimento, e não simplesmente fazer uma ação cosmética, como eles fazem há 5 anos na Cracolândia. Desde então, só aumentou, só piorou, só tornou o centro de São Paulo mais inseguro. O projeto é nacional, com recursos nacionais, mas terá que ser gerido pelos municípios, já que estamos falando de uma prerrogativa municipal.

Além disso, eu peguei mais de quinze relatorias de projetos de comissões de várias áreas na Câmara. Estou em cinco comissões: sou vice-presidente da Comissão de Desenvolvimento Urbano, estou na Comissão de Constituição e Justiça, na Comissão de Finanças e Tributação, na Comissão de Fiscalização e Controle e no Conselho de Ética. E, claro, atuando para deixar uma marca com foco no combate à desigualdade social.

E.B.: Tem-se falado bastante sobre a revisão do Plano Diretor de São Paulo. De que forma, na sua visão, o planejamento urbano da cidade pode fazer da cidade um local mais justo e menos desigual? Você olharia para isso com atenção caso esteja à frente da Prefeitura paulistana?

G.B: As nossas cidades foram construídas historicamente com uma segregação territorial. A desigualdade social se materializa no território, e isso faz com que a gente tenha duas realidades numa cidade só. Em São Paulo, se convive com o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] do Congo e com o IDH da Suécia. A idade média ao morrer no Jardim Paulista é de 80 a 82 anos, enquanto que, no Jardim Ângela e na Cidade Tiradentes, a idade média ao morrer é de menos de 60 anos.

Uma cidade tão desigual vai ser sempre uma cidade violenta, conflagrada e que não proporciona bem-estar para ninguém, nem mesmo para quem está no andar de cima. Nós temos que fazer um planejamento, e, hoje, o mundo está discutindo isso a partir do conceito de redução de distâncias.

Tenho buscado experiências internacionais. Estive com a prefeita de Santiago em abril, vou estar em Lisboa em maio, depois vou à Cidade do México, a Barcelona e, no segundo semestre, a Paris, onde fizeram um experimento muito interessante, o programa Cidade de 15 Minutos, cuja meta é reduzir os deslocamentos a, no máximo, 15 minutos, a pé ou de bicicleta. Estamos falando dos deslocamentos entre local de trabalho e moradia, moradia e espaços de lazer e cultura, moradia e serviços básicos… é um processo de descentralização urbana, com base no conceito urbanístico de “cidade policêntrica”. Nós também precisamos atuar nessa perspectiva.

Não é razoável que alguém saia do M’Boi Mirim ou de Perus e fique duas horas num ônibus lotado para chegar ao seu trabalho. Há romarias diárias, o que diminui tempo produtivo, piora a qualidade de vida, aumenta a poluição e gera um congestionamento terrível. Diminuir as distâncias passa por repensar a cidade, criar estímulos para a geração de empregos nas regiões periféricas e requalificar regiões centrais, como o centro de São Paulo, que hoje está degradado, inseguro e insalubre. 

E.B.: Como você vê o Brasil em dez anos?

G.B: Olha, eu sou uma pessoa esperançosa. O que a gente viveu nos últimos anos, no País, mexeu um pouco com a nossa esperança, com a nossa autoestima, com os sonhos que a gente tem para geração que vem aí. Eu acho que uma geração antes da minha teve uma missão: devolver para o País a democracia. Essa geração pagou um preço pesado, foi morta, torturada, perseguida e censurada para que a gente pudesse ter democracia hoje.

Agora, a nossa geração tem a missão de combater as desigualdades sociais neste País, reduzir esse abismo. Nós precisamos fazer uma parte da sociedade brasileira entender que combater a desigualdade é bom para todo mundo.

Josué de Castro, um grande médico e escritor brasileiro, falava que “metade do País tem fome, e a outra metade não dorme com medo da que tem fome”. O Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, mas tem trinta milhões de pessoas com fome. O Brasil tem riquezas incríveis, mas as pessoas estão na miséria. Assim, sempre teremos uma sociedade violenta e conflagrada. Mesmo as pessoas que estão no topo não vão conseguir usufruir do convívio público. Quem consegue viver sem a cerca de segurança de um condomínio fechado?

Combater desigualdade é enfrentar determinados privilégios inadmissíveis de uma sociedade ainda com raízes coloniais e escravistas muito fortes. Nós precisamos rever determinadas estruturas da nossa sociedade, mas tenho certeza de que o resultado final vai ser uma sociedade muito melhor para se viver para todo mundo.

E.B.: E, por fim, o que te move como pai e político?

G.B: O maior orgulho que eu já tive das minhas filhas foi num dia em que nós fomos em uma padaria perto da minha casa. Eu levei elas, porque elas sempre vão comigo para tomar sorvete, e, por lá, tinha uma pessoa em situação de rua pedindo um lanche, que eu comprei. Depois, chegando em casa, quando fui colocar elas para dormir, estava chovendo. Elas não estavam conseguindo pegar no sono, então fui no quarto delas, e elas me falaram: “Pai, aquele moço deve estar todo molhado agora”. Elas tinham cinco, seis anos de idade.

E sabe por que elas me orgulharam? Porque, para mim, o maior problema que a gente vive neste momento da nossa civilização é que estamos sendo levados por uma lógica de indiferença em relação aos outros. A sociedade foi se desumanizando, naturalizando uma barbaria, perdendo a capacidade de sentir a dor das pessoas, sendo consumida por um individualismo extremo e consumismo exacerbado.

Eu entrei na política primeiro via movimento social e, depois, na política partidária institucional, porque vejo que a política talvez seja o melhor instrumento que nós temos para transformar essa solidariedade em algo real, e não apenas em discurso e declaração de intenções. A política tem a vocação e o papel de produzir uma sociedade mais humana e mais justa. É nisso que eu acredito.

Eu sei que a política perdeu credibilidade — e com razão, já que uma parte dos políticos se utilizou dos seus espaços e dos seus cargos para obter privilégios, se locupletar e fazer negócios. Muitas vezes, políticos não têm sequer um projeto, e isso independe se são de direita ou de esquerda. 

A política precisa voltar a ter pê maiúsculo, precisa ter sentido histórico-social e grandeza. Se não for pela política, não temos outro jeito.

x

Utilizamos cookies e outras tecnologias para lhe oferecer uma experiência de navegação melhor, analisar o tráfego do site e personalizar o conteúdo, de acordo com a nossa Política de Privacidade. Ao continuar navegando, você concorda com estas condições.