A difícil missão de silenciar

Com dez severos conflitos em curso pelo globo em 2024, falas do presidente Lula podem expor País a crises políticas e comerciais

Por Françoise Terzian

O mundo está em pé de guerra e, infelizmente, essa frase não é apenas força de expressão. Na verdade, trata-se de um fato já consumado e crescente desde 2012, após um declínio da onda de conflitos na década de 1990 e no início dos anos 2000.

Primeiro, vieram os conflitos na Líbia, Síria e Iêmen, desencadeados pelas revoltas de 2011 — a chamada Primavera Árabe. A instabilidade da Líbia se espalhou para o sul, ajudando a desencadear uma crise prolongada na região do Sahel. Uma nova tendência de grandes combates se seguiu: a guerra entre as duas ex-repúblicas soviéticas, Azerbaijão e Armênia, em 2020, pelo enclave de Nagorno-Karabakh. Semanas depois, combates terríveis tiveram início na região norte de Tigré, na Etiópia, motivados pela tomada de poder do exército de Mianmar em 2021. Já em 2022, foi a vez do ataque da Rússia à Ucrânia. Soma-se a isso a devastação de 2023 no Sudão e em Gaza. Agora, em todo o mundo, mais pessoas estão morrendo em combates, sendo forçadas a deixar suas casas ou precisando de ajuda para salvar vidas do que em décadas.

“Em alguns campos de batalha, a pacificação é inexistente ou não leva a lugar nenhum. Em todos esses lugares, a diplomacia tem se resumido ao papel de administrar as consequências: negociar acesso humanitário, ou trocas de prisioneiros, ou fechar acordos como o que colocou grãos ucranianos nos mercados globais através do Mar Negro”, alerta o International Crisis Group (ICG), organização não governamental, independente e sem fins lucrativos comprometida em prevenir e resolver conflitos mortais.

Neste ano, segundo o ICG, há dez sérios conflitos acontecendo pelo mundo: Gaza, Guerra do Oriente Médio, Sudão, Ucrânia, Mianmar, Etiópia, Sahel, Haiti, Armênia-Azerbaijão e Estados Unidos-China. Embora não esteja diretamente envolvido em nenhum deles, qual posição o Brasil deve tomar? E quando o líder máximo de um país emite uma opinião, como isso respinga nos âmbitos político e comercial em meio à costura complexa de tantas relações bilaterais? 

Os cerca de 10 mil quilômetros que separam Brasília de Gaza não foram suficientes para impedir que Luiz Inácio Lula da Silva se tornasse persona non grata em Israel. Ao classificar a morte de civis em Gaza como genocídio, o presidente Lula foi duramente criticado pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que o acusou de “cruzar a linha vermelha” e de “banalizar o holocausto”.

Quem fala o que quer ouve o que não quer — e ainda pode sofrer efeitos colaterais como sanções diplomáticas, econômicas, militares ou individuais. Manter o silêncio é uma missão difícil para qualquer governante em tempos de mundo em pé de guerra. Talvez uma das maiores lições da história venha do britânico Henry John Temple, mais conhecido como lorde Palmerston, primeiro primeiro-ministro liberal que dominou a política externa britânica de 1830 a 1865, quando a Grã-Bretanha estava no auge de seu poder imperial. “Nós não temos aliados eternos nem inimigos perpétuos. Nossos interesses é que são eternos e perpétuos, e nosso dever está em perseguir esses interesses”, ensinou.

Em nome dos interesses do Brasil, o ex-embaixador em Londres e Washington, Rubens Barbosa, acredita que, como os conflitos não têm qualquer implicação direta sobre o Brasil, o País não deve tomar partido. “O Brasil não deveria interferir nem procurar fazer um grupo de paz, tampouco criticar um dos lados. Não devemos tomar partido de nenhum dos lados. Inclusive, nem cacife temos para interferir nessas guerras. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto refere-se aos pronunciamentos que o presidente da República fez — e a palavra do presidente é muito importante, pois ela é lida, ouvida e reflete sobre a própria credibilidade do presidente. No primeiro mandato, Lula era muito respeitado e bem-visto no exterior. Com esses pronunciamentos, a percepção externa é a de que o Brasil está tomando partido e, aí, a credibilidade do presidente fica afetada, assim como a da política externa ”, observa Barbosa.

Para o ex-embaixador, que hoje é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), o importante é defender o interesse do Brasil, sem ideologias. “Ao declarar Lula persona non grata, o contexto político fica deteriorado.”

Não intervenção

Historicamente, o Brasil adota uma posição de não intervenção nos conflitos. “Em relação à guerra da Ucrânia, há uma tentativa de neutralidade, mas ao mesmo tempo o Brasil faz parte do Brics [grupo de parceria entre as maiores economias emergentes do mundo], e existe uma aliança muito forte entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul”, analisa Demetrius Cesário Pereira, professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e da Belas Artes. “Então [o Brasil] não consegue ficar tanto contra a Rússia, mas já demonstrou algumas vezes, em votações da Assembleia Geral da ONU, com condenação à Rússia, que sua posição como país é de aversão ao uso das forças nas relações internacionais”, acrescenta.

Já em relação a Israel, embora tente historicamente manter uma posição de neutralidade, o Brasil mudou o tom no momento em que Lula reconheceu a Palestina como Estado, opinião não compartilhada pelos Estados Unidos, importantes mediadores da situação. “Além disso, existe a tendência dos governos um pouco mais à esquerda de terem uma posição um pouco menos pró-Israel e mais próximas dos países árabes. Já governos mais à direita, como foi o caso de Bolsonaro, um pouco mais pró-Israel. Então, talvez por isso, haja mais atritos com Israel”, comenta Pereira.

Constituição Federal

Embora o cenário internacional da atualidade seja de muito intrincamento, o professor Demetrius Cesário Pereira acredita que o País deva ser pautado pelos princípios da Constituição Federal, especificamente pelo Artigo 4º, que diz respeito aos princípios das relações internacionais do Brasil. “Ele já dá um norte para o nosso posicionamento internacional e, dentro desses princípios, o da não intervenção prevê a manutenção da neutralidade e certa distância desses conflitos.”

Sair fora dessa rota tende a afetar o Brasil mais politicamente que comercialmente. Afinal, trata-se de questões de Estado, de relações com outros países. “O comércio também pode ser afetado, mas talvez de forma indireta. É muito difícil hoje em dia separar, em um mundo tão complexo e interdependente, as questões comerciais e políticas. Mas é importante dizer que o comércio ocorre entre países e não entre governos. O comércio se dá muito mais entre os comerciantes, os empresários em geral. Não é o governo brasileiro comprando do governo israelense”, explica o professor. 

É claro que situações de acordos comerciais não fechados por questões políticas podem acontecer. A guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, prejudicou severamente as exportações da Ucrânia por conta de dificuldades geográficas e interdições de portos. O país presidido por Volodymyr Zelensky é um grande exportador de alimentos e contribui com 42% do óleo de girassol comercializado no mercado global, 16% do milho e 9% do trigo. Com o bloqueio dos portos pela Rússia, os agricultores ucranianos ficaram com 20 milhões de toneladas de grãos impedidos de chegar aos mercados internacionais. Uma situação de perda-perda, para a Ucrânia e para o mercado global, que viu o preço de vários alimentos disparar.

Venezuela

Apesar de não ser um conflito entre países, a situação da Venezuela, hoje considerada por muitos uma ditadura, também atrai olhares para o Brasil. Após o pleito que elegeu o chavista Nicolás Maduro para o seu terceiro mandato consecutivo como presidente venezuelano, Lula ficou sob os holofotes enquanto decidia se reconhecia ou não a vitória de seu antigo aliado.

A irresolução gerou comentários de líderes ao redor do mundo e levou 30 ex-presidentes a pedirem, por meio de uma carta pública, que Lula defendesse a democracia na Venezuela, uma vez que “Maduro usurpou a soberania popular venezuelana”. 

De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, Maduro teria vencido, com 51,1% dos votos, as eleições realizadas no dia 28 de julho. O resultado, porém, logo foi contestado por María Corina Machado, líder da oposição, que alegou ter em mãos dados suficientes para comprovar que o candidato e ex-embaixador Edmundo González Urrutia seria o verdadeiro vencedor. 

Começou, então, a pressão interna e externa para que Maduro comprovasse ter de fato recebido 6,4 milhões de votos. Demorou cerca de um mês para que o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) entregasse as atas eleitorais ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), órgão máximo do sistema judiciário venezuelano. Depois de suposta auditoria, a corte, ligada ao chavismo, declarou Maduro presidente. Urrutia, o candidato da oposição e possível vencedor, por sua vez, deixou a Venezuela e pediu asilo político na Espanha, em atitude “necessária para preservar sua liberdade, integridade e vida”.

Em meados de outubro, o Partido dos Trabalhadores (PT) assinou, no Foro de São Paulo, resolução que reconhece a vitória de Maduro. O movimento causou desconforto em alguns setores do partido. Até o fechamento desta edição da Revista Esfera, Lula não havia se pronunciado sobre o ocorrido. O presidente brasileiro reiterou diversas vezes que o País só reconheceria as eleições venezuelanas após a divulgação pública das atas eleitorais, o que não aconteceu. 

Prestes a assumir a presidência rotativa do Brics, o Brasil barrou a entrada da Venezuela como parceira do grupo por meio da nova categoria de “membros associados”, os quais participam de praticamente todas as reuniões do bloco, mas não têm poder de veto.

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