
- Política
- 03.04.2025
- Redação
Um jogo intrincado
Há muitas camadas de complexidade envolvendo as dívidas das unidades federativas e o novo programa de renegociação com a União
Por Daniela Rocha
O Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), que tenderá a pressionar as contas do governo federal, vem recebendo críticas justamente de unidades federativas que se destacam por maiores desequilíbrios fiscais. O novo plano de socorro foi instituído pela Lei Complementar (LC) 212/2025, sancionada com vetos do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
A dívida total em 2024 foi de aproximadamente R$ 825 bilhões, conforme dados mais recentes do Relatório de Gestão Fiscal (RGF) do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), disponibilizado pelo Tesouro Nacional.
O fato é que o endividamento dos estados é uma questão intrincada, que envolve diversas camadas de complexidade, polêmicas e dificuldade para alinhamentos e acordos ao longo do tempo.
Desde a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, com foco na disciplina orçamentária entre as unidades federativas e limitação dos seus níveis de dívidas, o cenário prosseguiu marcado por disparidades e dificuldades estruturais, destaca Rodrigo de Losso da Silveira Bueno, pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) e professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEAUSP).
A relação entre Dívida Consolidada Líquida (DCL) e a Receita Corrente Líquida (RCL) de quatro estados é superior a 100% — Rio de Janeiro (199,87%), Rio Grande do Sul (182,67%), Minas Gerais (156,37%) e São Paulo (120,04%). Desse modo, segundo ele, há uma elevada pressão fiscal, embora ainda respeitando o limite de endividamento estabelecido na LRF de até 200% ou duas vezes a receita. “Esse nível de endividamento pode levar ao descontrole, limitando severamente a capacidade de financiamento de políticas públicas e investimentos essenciais. Caso não haja contenção, o risco é de uma trajetória insustentável”, avalia Bueno.
Existe ainda uma parcela significativa de entes federativos em situação moderada de endividamento, com razão DCL/RCL entre 50% e 99%, sendo que alguns encontram-se em situação preocupante. E, na outra ponta, estão estados mais equilibrados, com esse indicador negativo, por apresentarem superávit financeiro, terem receitas extraordinárias e/ou receberem grandes transferências federais. Entre os menos endividados estão Mato Grosso (-21,77%), Paraíba (-11,53%), Paraná (-10,88%) e Espírito Santo (-7,91%).
“Essas disparidades são atribuídas a diferenças regionais e capacidade administrativa. Historicamente, as renegociações das dívidas estaduais são uma constante nas relações entre estados e governo federal, apontando para os desafios de gestão fiscal e coordenação federativa”, acrescenta o pesquisador da Fipe.
Segundo ele, o Brasil tem passado por sucessivas rodadas de renegociação das dívidas estaduais desde a Lei 9.496 de 1997 até o mais recente Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Agora, há o Propag.
Por trás das dívidas
Em linhas gerais, a situação de alto endividamento dos estados é arrastada e ocorrem novos ciclos de renegociações porque faltam ajustes contundentes, principalmente medidas para diminuir as despesas e aumentar a eficiência. “Esses planos de renegociação são associados a uma janela de tempo para os estados se ajustarem, mas eles não fazem o dever de casa”, explica Gabriel Barros, economista-chefe da ARX Investimentos.
Na visão dele, a maioria precisa fazer uma reestruturação de cargos e salários dos servidores, por exemplo. A guerra fiscal é outro ponto a ser combatido. “A revisão de renúncias fiscais é fundamental, pois o volume é gigantesco. No total, está girando em mais de R$ 100 bilhões por ano e muitas delas não têm prazo para acabar”, continua Barros. Nesse sentido, é importante que os entes federativos façam uma avaliação do custo-benefício, checando quais são realmente vantajosas e quais devem ser extintas.
Um problema recorrente é o fato de que alguns estados vão à Justiça para pedir a suspensão dos pagamentos de juros das dívidas por determinados períodos, obtendo liminares. “São decisões que destroem a relação contratual com o governo federal e criam uma situação de risco moral. Os estados têm incentivo para não pagar, porque o Supremo, na média, toma decisões favoráveis a eles”, destaca Barros. Ao não entregarem o combinado, deveriam perder a condição de renegociação, mas o Judiciário acaba impedindo que a União execute as garantias do contrato. “Assim, os estados ficam nesse limbo até nova renegociação.”
Por sua vez, há unidades federativas que têm apresentado baixa arrecadação per capta, o que limita a capacidade de gerar receitas próprias para custeio, segundo Rodrigo de Losso da Silveira Bueno.
Quando surgem notícias e novidades envolvendo planos de socorro, discussões sobre o pacto federativo também costumam vir à tona. “A estrutura atual concentra a maior parte da arrecadação na União, enquanto estados e municípios são responsáveis por grande parte de serviços essenciais. Isso acaba gerando alguns descompassos entre arrecadação e responsabilidades de gastos”, comenta o pesquisador da Fipe.
O novo plano de recuperação fiscal
O Propag visa apoiar a recuperação fiscal dos estados e do Distrito Federal, concedendo desconto nos juros e permitindo o pagamento em até 360 parcelas mensais, ou seja, com prazo de até 30 anos.
O plano também dá a possibilidade de amortizações extraordinárias e redução dos valores nos primeiros cinco anos. Além disso, os estados podem quitar parte das dívidas a partir da transferência de ativos para a União, incluindo imóveis, créditos com o setor privado e participações societárias.
Contudo, as contrapartidas previstas na lei que institui o Propag são investimentos em educação, saneamento, transporte, segurança pública e iniciativas para enfrentar as mudanças climáticas. Outra novidade é a criação de um Fundo de Equalização Federativa, para compensar os estados menos endividados.
Dependendo das condições negociadas com cada ente, os juros podem ser o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) + 2%, com pequena taxa real, ou o IPCA + 0%, ou seja, correção somente pela inflação. O prazo para a adesão ao Propag vai até 31 de dezembro deste ano.
Os estados que ingressarem no Propag estarão proibidos de contratar novas operações de crédito para pagar parcelas e não poderão atrasar mais de seis parcelas em um período de 36 meses, visto que a pena nesses casos é o desligamento imediato.
Vetos de Lula ao Propag
A LC que instituiu o Propag teve 13 pontos vetados pelo presidente Lula. Dentre os principais, foi retirada do texto a desobrigação dos estados de cumprirem metas do RRF no ano de adesão ao Propag. Também foi vetada a manutenção do apoio financeiro que é dado aos entes do RRF para honrarem as dívidas com instituições financeiras e organismos multilaterais ao aderirem ao Propag. Atualmente, o governo federal paga as parcelas desses contratos e incorpora os valores ao estoque da dívida com a União.
O presidente ainda derrubou a utilização dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) como uma forma alternativa de abatimento da dívida. Outra parte retirada por Lula foi a que autorizava os estados a reduzirem suas dívidas com a União como despesas ligadas a obras de responsabilidade do governo federal.
Esse conjunto de vetos levantou críticas entre governadores e secretários da Fazenda. Entretanto, também ganharam impulso as articulações políticas para derrubá-lo.
“Acredito que a adesão ao Propag vai ser enorme. Com a possível derrubada dos vetos, o programa ficará ainda mais vantajoso”, analisa Gabriel Barros. Inclusive, ele salienta que Hugo Motta, recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados, chegou a participar de reuniões sobre o tema em São Paulo e no Rio de Janeiro, com parlamentares e representantes de governos estaduais.
Se a tendência dos dois anos do governo Lula 3 continuar, é bem provável que isso aconteça. De acordo com uma matéria veiculada n’O Globo no dia 25 de janeiro, houve recorde de vetos derrubados por deputados e senadores na primeira metade do mandato. No total, foram 28. Para evitar contratempos, o governo federal planeja uma reforma ministerial e busca melhorar sua interação com o Congresso.
Reivindicações dos estados
O Rio de Janeiro tem uma dívida de R$ 218 bilhões, de acordo com dados de dezembro de 2024, sendo R$ 174 bilhões com a União. Nos últimos cinco anos, o endividamento aumentou porque as regras do RRF permitem o pagamento de uma parcela menor da dívida, o que acaba por aumentar o saldo devedor com incorporação dos juros, ressalta Leonardo Lobo, ex-secretário de Estado de Fazenda do Rio de Janeiro e recém-nomeado assessor especial no governo fluminense.
No entanto, o economista Gabriel Barros explica que, ao aderir ao RRF em 2022, o Rio de Janeiro teria que entregar contrapartidas, promovendo ajustes nas suas contas. Mas esse plano de consolidação fiscal não foi colocado em prática como deveria.
Uma das justificativas para isso, conforme o governador Cláudio Castro manifestou várias vezes, refere-se à LC 194/2022, que limitou alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre operações com combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo, levando à queda da arrecadação estadual.
Lobo avalia que os vetos de Lula tornam inviável a adesão ao Propag, não somente por parte do Rio, mas para outras unidades que estão no RRF. “Na prática, os vetos retiram do Propag a prerrogativa de criar condições mais sustentáveis para o pagamento da dívida, o que compromete investimentos em áreas como saúde, segurança e educação, além de melhorias em infraestrutura”, diz.
O Rio de Janeiro defende o uso do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), considerado uma ferramenta importante para reduzir a taxa de juros da dívida, na amortização extraordinária e, ainda, a manutenção do pagamento escalonado para as dívidas garantidas pela União, um benefício concedido pelo RRF.
Já a dívida do Rio Grande do Sul é de R$ 112,4 bilhões, sendo R$ 100,4 bilhões devidos à União, segundo dados de 2024.
O secretário-adjunto da Fazenda do Rio Grande do Sul, Itanielson Cruz, afirma que o valor da dívida com a União avançou mais de 90% nos últimos cinco anos. Dentre os motivos está a correção pelo Coeficiente de Atualização Monetária (CAM), que tem acompanhado a variação da taxa Selic. Como no caso do Rio de Janeiro, ele também relaciona o crescimento da dívida à sistemática do RRF, que possibilitou a postergação de pagamentos desde 2022.
Em função das enchentes, o governo federal sancionou a LC 206/2024, que trata da suspensão do pagamento das parcelas da dívida do Rio Grande do Sul por 36 meses, de maio de 2024 a abril de 2027.
A legislação determina que os valores destinados ao pagamento do serviço da dívida sejam aplicados no Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), que está financiando ações de enfrentamento aos danos causados pela tragédia climática.
A Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul (Sefaz RS) estima que a medida criará um espaço fiscal de R$ 14 bilhões até o fim do período de suspensão. Porém, o efeito positivo no saldo devedor da dívida poderá chegar a R$ 19 bilhões, decorrentes da não incidência de juros — no saldo — e da alteração dos encargos de CAM para IPCA.
Desde que a lei que instituiu o Propag foi sancionada, o governo do Rio Grande do Sul vem se manifestando contra os vetos de Lula, que poderiam acarretar em perdas de até R$ 7 bilhões, reduzindo recursos disponíveis para a reconstrução pós-enchentes. O Tesouro Nacional rebate esse impacto dizendo que a adesão ao Propag será mais vantajosa do que o RRF e que o estado do Rio Grande do Sul não perderá o benefício da suspensão do pagamento das dívidas nem precisará aportar imediatamente recursos ao Fundo de Equalização Federativa — o que acontecerá apenas a partir de 2027.
A Sefaz RS solicitou ao governo federal acesso às notas técnicas e pareceres jurídicos que estão sendo utilizados como base para a afirmação de que os vetos presidenciais não alterariam os atuais fluxos de pagamentos do estado, considerando o RRF e a LC 206/2024.
Barros destaca que o governador Eduardo Leite liderou medidas para ajustar as contas, como a reforma administrativa e as privatizações da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), adquirida pela Equatorial, e da Companhia de Gás do Estado do Rio Grande do Sul (Sulgás), arrematada pela Compass, do grupo Cosan. “Apesar de ele ter feito bastante coisa, os ganhos fiscais dessas reformas são pequenos no começo e vão aumentando ao longo do tempo. Além disso, o estado sofreu um choque negativo com as enchentes”, pondera Barros.
Impactos
Em janeiro, o Tesouro Nacional divulgou uma nota técnica sobre os possíveis impactos financeiros da renegociação das dívidas dos estados com a União por meio do Propag. No cenário negativo, o impacto chega a R$ 105,9 bilhões entre 2025 e 2029. Nesse caso, há ausência de amortizações e aplicação de taxa real de 2% ao saldo devedor.
Por sua vez, o cenário positivo considera uma transferência significativa de ativos dos estados para a União, totalizando aproximadamente R$ 162 bilhões, com redução de 20% no saldo devedor e incidência de uma taxa real de 0%. Assim, o impacto líquido da renegociação seria positivo em R$ 5,5 bilhões no mesmo período.
O Tesouro observou, contudo, que, em razão da possibilidade de os estados escolherem várias combinações, não é possível prever, neste momento, todas as situações.
Pelos cálculos de Barros, os efeitos estão subestimados, sobretudo no biênio 2025-2026. “Acredito que o impacto será maior, principalmente devido à possível derrubada dos vetos, porque vai ficar mais vantajoso para os estados.”