- Economia
- set | 2025
- Redação
Transação tributária reinventa resgate de créditos da dívida ativa
Acordos mais flexíveis, apoiados pela análise de dados e inteligência artificial, se multiplicam e contribuem para a arrecadação da União e diversos estados
Em meio à constante restrição financeira e despesas crescentes, União e diversos estados brasileiros estão focando as transações tributárias, com base em integração de sistemas, análise de dados e suporte da inteligência artificial (IA). O objetivo é o resgate mais efetivo de créditos da dívida ativa, ampliando a arrecadação e mitigando impactos do desequilíbrio das contas públicas.
Dentre as 27 unidades federativas do País, ao menos 12 já possuem legislação específica inspirada na Lei Federal 13.988/2020, que estabeleceu a transação tributária e modernizou soluções de litígio acerca dos débitos inscritos em dívida ativa. Os dados são de uma pesquisa recém-divulgada pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
O Regime de Recuperação Fiscal (Refis) é historicamente o instrumento mais utilizado para resgatar valores que poderiam ficar inadimplidos, mas também oferece vantagens lineares para todos os contribuintes. O novo regramento permite negociações com uma série de vantagens variáveis, tais como descontos em juros e multas, entrada facilitada, prazo alongado de parcelamento e prestação com valor mínimo mais acessível — conforme o grau identificado de recuperabilidade da dívida.
A transação tributária vem, acompanhada da cultura data-driven, para segmentar devedores, entender os motivos da inadimplência e identificar as características da dívida para oferecer melhores condições e alcançar maior recuperação financeira. “O impacto da lei mais flexível foi substancial. A PGFN [Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional] estima a capacidade do pagador, com a inteligência artificial avaliando o fôlego financeiro. E o contribuinte tem maior abertura para apresentar uma forma de negociação que lhe seja mais viável, dentro das diretrizes”, afirma o professor Frederico Bastos, pesquisador do núcleo de Pesquisas em Tributação no Insper.
O suporte das inovações tecnológicas tem agilizado também o atendimento aos representantes dos contribuintes. Agentes de IA têm autonomia para tomadas de decisões antes consideradas complexas. “Em âmbito federal, os pedidos de revisão baseados em decadência ou prescrição da dívida ativa já têm respostas automáticas. Os chatbots na Receita Federal e da PGFN fazem o atendimento e já trazem a informação atualizada”, exemplifica a tributarista Maria Rita Ferragut, consultora do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe.
Dívida ativa x transação tributária
A dívida ativa da União chegou a R$ 3 trilhões em 2024. Trata-se do dobro do montante apurado dez anos atrás. Do total atual, R$ 1 trilhão está negociado por parcelamento ou transação regular, integralmente garantido ou suspenso por decisão judicial. Outros R$ 2 trilhões estão em vias de cobranças. As informações consolidadas são da PGFN.
A dívida ativa federal representa o conjunto de créditos — tributários e não tributários — que a Fazenda Pública possui em seu favor e que não foram pagos no prazo legal. A cobrança eficaz é crucial para a saúde financeira da União, pois contribui diretamente para a arrecadação, a redução do desequilíbrio fiscal — relação receitas x despesa — e a manutenção de investimentos e serviços públicos.
A PGFN é a responsável por ações preditivas, de controle, fiscalização, investigação, combate à fraude e recuperação dos valores. Inscrita em dívida ativa, a pessoa física ou jurídica passa a ser devedora e, com isso, poderá sofrer restrições em seu crédito, como protesto, inserção do nome no Serasa, entre outros) e inclusive no seu próprio patrimônio (averbação pré-executória), podendo chegar a perder os seus bens (leilão judicial ou adjudicação, por exemplo).
Nos cinco anos de vigência da transação tributária, a PGFN renegociou R$ 800 bilhões da dívida ativa junto a devedores, chegando a acordos para o pagamento de R$ 445,8 bilhões. “Os valores negociados podem até parecer pouco em relação ao total da dívida ativa, mas não é em relação ao viés recuperável. E um dos grandes méritos da transação tributária, além da arrecadação mais célere, dando aos pagadores mais alternativas, tem sido a abordagem às empresas em vias de falência, dentre elas as afetadas pela pandemia de Covid-19 ou pelas enxurradas no Rio Grande do Sul”, enfatiza Ferragut.
Do montante conciliado, cerca de R$ 82,5 bilhões já entraram nos cofres públicos — sendo R$ 59,9 bilhões só em 2024, recorde de arrecadação. Somente proveniente de transações tributárias foram R$ 34,1 bilhões, segundo a PGFN. “Embora houvesse no código tributário a possibilidade de personalização, só com a lei da transação tributária a prática ganhou tração. O poder público tem sido estratégico, selecionando temas com controvérsias mais conhecidas e maior probabilidade de perda da causa pelos contribuintes. Para avançar mais, convém ampliar os assuntos não massificados, com esse aspecto mais maleável nas negociações”, pondera Paulo Roberto Andrade, sócio da área Tributária no Madrona Advogados.
Os litígios tributários estão entre os vilões da morosidade da Justiça brasileira. Processos de execução são responsáveis por, em média, 35% dos casos pendentes — as fiscais são o maior volume da União, estados e prefeitura. O cenário é desafiador quando se considera que a taxa de recuperação dos créditos tributários vinha sendo de 1% a 1,5%, em média. Mas a transação tributária tem mudado o contexto. “A nova lei é de fato um ganho relevante. Mas falta também mais investimento na negociação precoce e celeridade do processo administrativo. Quanto maior a simplificação, menos litígio”, defende Andrade.
Por meio de nota oficial, o Ministério da Fazenda informou que tem reforçado seu compromisso com o uso estratégico de dados, tecnologias emergentes e IA para aprimorar a formulação e execução de políticas públicas, incluindo iniciativas voltadas à administração da dívida ativa e à modernização de programas de renegociação tributária.
Dívida ativa surreal
R$ 3 trilhões foi o valor apurado em termos de dívida ativa pela PGFN em 2024, cerca do dobro do montante apurado dez anos atrás.
Recuperação em crescimento
R$ 448 bilhões foram acordados para pagamento à União nos últimos cinco anos, desde o regramento da transação tributária.
União vira referência
– Até 133 meses para parcelamento da dívida ativa, e descontos de até 100% nas multas e juros do total dos créditos de pessoa física, microempresas e empresas de pequeno porte.
– Até 114 meses para parcelamento da dívida ativa, e descontos de até 100% nas multas e juros do total sobre passivo tributário para todos os demais contribuintes.
Estados aderem à modalidade
– Até 145 meses, em média, para parcelamento da dívida ativa, e descontos de até 70% nas multas e juros do total dos créditos de pessoa física, microempresas e empresas de pequeno porte.
– Até 120 meses, em média, para parcelamento da dívida ativa, e descontos de até 65% nas multas e juros sobre passivo tributário para todos os demais contribuintes.
Soluções adicionais para controlar a dívida ativa
Via Cadin
– Mudança recente na legislação impediu o setor público de firmar contratos com CNPJs que estão no registro de inadimplentes e reforçou a política de recuperação de créditos. Atualmente, técnicos da PGFN estimam que R$ 1,7 bilhão são arrecadados por ano com a simples inclusão de devedores no Cadastro Informativo dos Créditos não Quitados de Órgãos e Entidades Estaduais (Cadin), antes mesmo do contencioso jurídico.
Via reforma tributária
– A reforma tributária institui o split payment, mecanismo pelo qual o valor do tributo é automaticamente separado do montante da mercadoria ou serviço no momento da transação, sendo usado para extinção do débito ou para garantir o crédito tributário do pagador. Trata-se de um ecossistema de quitação fiscal eficiente e inovador.
IBGE e Serpro fortalecem políticas públicas preditivas
Dentre as novidades da integração de dados no poder público destaca-se o lançamento do Programa Nacional de Inteligência e Governança Estatística e Geocientífica, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro).
A iniciativa teve adesão de oito órgãos públicos federais e propõe uma nova abordagem no uso de dados estatísticos e geocientíficos, com foco na antecipação de cenários futuros. Com o apoio de tecnologias avançadas e análise preditiva, o programa busca fortalecer a capacidade do Estado de identificar problemas e oportunidades, oferecendo uma base mais sólida para a formulação de políticas públicas eficazes, sustentáveis e voltadas ao médio e longo prazo.
O programa atende demandas do INSS e da saúde, aprofundando, por exemplo, conhecimentos sobre acidentes e adoecimentos relacionados ao trabalho, e visando a melhor provisão de recursos.
O IBGE enfatizou, por meio de nota, que o programa está em linha com o Conecta GOV.BR, movimento do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos para a integração dos diferentes bancos de dados por meio da Interface da Programação de Aplicativos (APIs).
O Serpro informou que desenvolve soluções com tecnologias open source (disponíveis publicamente), tecnologias próprias ou utilizando tecnologias de parceiros. No caso do IBGE, foi utilizada uma tecnologia do parceiro Huawei. A solução permite ao IBGE integrar modelos conversacionais, como o Large Language Model (LLM), com a base de dados do IBGE, dando maior produtividade ao cliente na análise dos dados.
Ainda no primeiro trimestre deste ano, a PGFN lançou uma nova versão do Sispar, sistema que permite simular, negociar e acompanhar dívidas com a União. Desenvolvida pelo Serpro, a solução simplifica o processo ao exibir automaticamente as melhores opções disponíveis de pagamento, permitindo ao contribuinte compará-las facilmente.
Criatividade fiscal tem limites
Em um movimento que busca dar mais agilidade à economia e resolver impasses burocráticos, os precatórios — que antes eram sinônimo de uma longa e incerta espera — ganham novo papel. Esses títulos, que representam dívidas do governo com cidadãos e empresas, passaram a poder quitar débitos inscritos na dívida ativa.
A mudança, amparada por legislação recente, como a Emenda Constitucional 113/2021, transforma o precatório em uma verdadeira moeda para negociação. O credor consegue, enfim, dar utilidade a um valor que estava travado há anos, enquanto o governo recupera parte de seus créditos.
“O uso de precatórios por contribuintes, de fato, se tornou razoavelmente comum frente à dívida ativa. Mas, quando se fala em criatividade fiscal por parte da pessoa física ou jurídica, o mais importante é estar em conformidade com a lei, não só para que o poder público faça seu papel, mas também para evitar a gestão de danos por conta de informações não fidedignas”, alerta Frederico Bastos, do Insper.
Dentre os caminhos ainda a serem aprimorados, segundo os especialistas consultados pela Revista Esfera, está a recuperação da dívida ativa via securitização: venda dos créditos a receber para investidores. Tal dinâmica visa à liquidez ao poder público, mas exige uma avaliação criteriosa dos riscos envolvidos — com base em dados precisos — para que haja a devida recuperação dos valores junto aos contribuintes e a quitação do vínculo com juros a quem fez o aporte de capital.
No entanto, mesmo com a Lei Complementar 208/2024, que regulamenta a prática da securitização da dívida ativa da União, estados e Distrito Federal com o setor privado, a prática ainda não decolou. Debêntures e Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDCs) enfrentam resistência por serem vistos por parte dos juristas como uma antecipação de receitas, o que fere a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Do lado do contribuinte também é preciso cuidado com a criatividade fiscal. Quando a contabilidade mascara a realidade econômica, uma organização pode comprometer sua reputação, aumentar as chances de auditoria fiscal e gerar consequências jurídicas graves. Caso ultrapasse a linha da legalidade, a iniciativa transforma-se em omissão de receitas ou apresentação de registros contábeis falsos, configurando sonegação fiscal, crime com penalidades que incluem detenção e multas.