
- Política
- jun | 2025
- Redação
Solução ou risco?
Guardas Municipais avançam no País, mas existem desafios para atuação adequada e com limites
Dois homens em uma moto assaltaram e atiraram em um ciclista ao lado do Parque do Povo, no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, em fevereiro deste ano. A vítima não resistiu aos ferimentos e morreu. Em abril, um turista mineiro levou quatro tiros durante uma tentativa de assalto na zona portuária do Rio de Janeiro, onde iria embarcar em um cruzeiro para sua lua de mel. Ele foi socorrido e sobreviveu. Ainda em abril, uma estudante foi perseguida e abordada por um homem ao sair do Terminal Itaquera, também em São Paulo, no trajeto que sempre fazia até sua casa. Ela foi encontrada morta quatro dias depois, seminua, com queimaduras e ferimentos pelo corpo.
Essas são cenas e notícias que geram preocupação e medo, um sentimento de insegurança nos cidadãos. As estatísticas oficiais sobre criminalidade, levantadas pelo governo federal e divulgadas no Mapa da Segurança Pública 2024 (ano-base 2023) apontam, por exemplo, que o Brasil tem uma média de 2,64 casos de latrocínio por dia. Além disso, 1,59 pessoa é vítima de lesões corporais violentas que resultam em morte a cada dia. Por sua vez, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) revela que o Brasil tem 107 aparelhos de celular roubados ou furtados por hora — foram 937,2 mil registros em 2023, visto que 78% ocorreram em vias públicas.
Diante de situações de violência urbana, as Guardas Municipais vêm avançando e ganhando mais atribuições. Entre 2019 e 2023, houve um crescimento de 11,3% no número de municípios que implementaram suas próprias Guardas, chegando a 1.322. Isso significa que quase 24% do total de municípios brasileiros conta com essa estrutura de segurança pública, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base na Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic).
Já o efetivo das Guardas Municipais teve um incremento de 2,4% no mesmo período, indo para 101.854 — 84,7% homens e 15,3% mulheres. E o percentual de municípios em que a Guarda Municipal utiliza arma de fogo atingiu 30%, proporção que em 2019 era de apenas 22,4%, também conforme o IBGE.
De acordo com a Constituição Federal, o papel das Guardas Municipais é proteger o patrimônio municipal, como praças, parques e monumentos, além de zelar pela ordem e pelo bom convívio dos cidadãos em logradouros públicos. No entanto, com a crise da segurança, surgiram mudanças. “Com o tempo, houve uma distorção do papel, e as Guardas Municipais passaram a atuar como se fossem uma extensão da Polícia Militar”, afirma Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminalista e ex-secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo.
Para Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e coordenador da Escola de Segurança Multidimensional (Esem), também da USP, a ascensão das Guardas Municipais é uma resposta gradual à escalada da insegurança desde os anos 1990. “O Brasil tinha uma taxa de homicídios muito menor, e era mais concentrada em São Paulo e no Rio de Janeiro, que eram muito diferentes do resto do País. Com o desenvolvimento principalmente das regiões metropolitanas, todas as cidades médias e grandes também passaram a conviver com crimes e violência. Por exemplo, houve o fenômeno da violência no Nordeste”, diz.
Desse modo, os eleitores intensificaram as cobranças aos prefeitos. “As prefeituras foram respondendo cada vez mais, até que, em 2014, acabou saindo o Estatuto Geral das Guardas Municipais, que é uma lei federal que regulamenta o funcionamento dessas corporações”, comenta Carneiro. E essa pressão sobre os políticos é uma realidade que persiste. “Uma prova disso é que, na última eleição para a Prefeitura de São Paulo, os principais temas debatidos foram segurança, Guardas Municipais e ações de controle e reurbanização da Cracolândia”, acrescenta.
STF reconhece função
Como desdobramento dessa trajetória ascendente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 20 de fevereiro deste ano, que é constitucional a criação de leis pelos municípios para que as Guardas Municipais atuem em ações de segurança urbana. Essas normas, no entanto, devem respeitar limites, de forma que não se sobreponham às atribuições das Polícias Civil e Militar, mas cooperem com elas.
A matéria foi julgada no Recurso Extraordinário (RE) 608588, com o Tema 656 da repercussão geral, o que significa que a decisão do STF deverá ser seguida pelas demais instâncias da Justiça em casos que questionam as atribuições das Guardas Municipais.
Segundo o entendimento fixado, as Guardas Municipais não têm o poder de investigar, mas podem fazer o policiamento ostensivo e comunitário e agir diante de condutas lesivas a pessoas, bens e serviços, inclusive realizar prisões em flagrante.
“Essa decisão do STF vem no sentido de reconhecer e dar legalidade a uma realidade que já existe. Até agora, as Guardas realizavam essas atividades, muitas vezes, de forma não tão clara”, analisa Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e integrante do FBSP. Entretanto, a decisão da instância máxima do Poder Judiciário levanta pontos de atenção entre especialistas. “Acredito que uma Guarda Municipal que faz esse tipo de patrulhamento é bem-vinda, pois a Polícia Militar não tem conseguido dar conta da necessidade das grandes cidades. Porém é preciso investir na formação e no treinamento.”
O advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira avalia que é essencial melhorar não só o preparo técnico — principalmente em relação ao uso de armas —, mas também o psicológico. “São atividades desgastantes, que mexem com o emocional. A Guarda Municipal deve ser treinada e preparada psicologicamente para não atirar a esmo”, alerta. Ele afirma que as vozes de comando devem ser pacificadoras, e não violentas, para que excessos não aconteçam, gerando ainda mais insegurança à população.
Mariz de Oliveira destaca ainda que cabe à União legislar sobre as linhas-mestras da segurança pública e do direito penal. “Eu tenho temor de que essas legislações múltiplas dos municípios sobre as Guardas acabem criando desorganização no campo da segurança pública.”
Também pensando nesse sentido, o professor Leandro Piquet Carneiro defende que o Estatuto Geral das Guardas Municipais seja modernizado para assegurar maior padronização da atuação. Na visão do especialista, mesmo as Polícias Militares de alguns estados têm atuado de forma não uniformizada em relação aos Procedimentos Operacionais Padrão (POPs). “Então, se muitas vezes, as PMs não agem de forma padronizada e não têm treinamentos nem controles adequados, imagine as Guardas, que, de forma geral, não possuem modelos para seguir”, ressalta.
Outro ponto crítico levantado pelos especialistas sobre a expansão das Guardas Municipais no País é a necessidade de criação de estruturas de fiscalização como controladorias e corregedorias, além de Ministérios Públicos vigilantes, para uma atuação dentro de limites, evitando tanto casos de excessos quanto de corrupção. Isso é ainda mais relevante por conta do avanço do crime organizado e de algumas administrações municipais com ligações com o Primeiro Comando da Capital, organização criminosa amplamente conhecida como “PCC”, por exemplo.
A tecnologia — sobretudo câmeras para monitoramento de áreas públicas, sistemas de reconhecimento facial, assim como câmeras corporais — será cada vez mais uma aliada no combate ao crime e à contenção de abusos. “A tecnologia faz o trabalho ficar eficiente, mas a grande questão ainda será a capacidade operacional humana, ou seja, a análise de dados para orientar as operações e guardas treinados nas ruas”, continua Carneiro.
Estruturas ganham força
Para Orlando Morando, secretário de Segurança Urbana da Cidade de São Paulo, a decisão recente do STF reconhece o trabalho dos agentes municipais, que já atuam de forma ostensiva na proteção cotidiana dos cidadãos.
Conforme ele, a Prefeitura mantém investimento e aprimoramento contínuos na Guarda Civil Metropolitana (GCM), que atualmente conta com 7.500 agentes em exercício — número superior ao efetivo da Polícia Militar em dez estados brasileiros. Apenas nos primeiros meses de 2025, foram incorporados 500 novos agentes. Em 2021, o total de guardas era de 5.961.
O secretário diz que o Smart Sampa, programa de monitoramento de segurança da cidade que utiliza câmeras inteligentes emitindo alertas em tempo real, tem permitido ações rápidas e precisas de agentes. A tecnologia, integrada ao banco de dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP) e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), já auxiliou na captura de 979 foragidos da Justiça, na localização de 53 pessoas desaparecidas e na prisão de 2,2 mil criminosos em flagrante. Hoje, são 25 mil câmeras com tecnologia de reconhecimento facial instaladas em pontos estratégicos da capital paulista.
Desde 2022, a GCM tem passado por um processo de modernização, incluindo a substituição de armamentos obsoletos. “Atualmente, a corporação conta com mais de sete mil novos equipamentos”, conta Morando. Além disso, ele destaca que a frota da GCM recebeu 50 viaturas elétricas.
Já a Guarda Civil Municipal do Recife (GCMR) dispõe hoje de um efetivo de 1.729 que atua em parceria com outros órgãos, a exemplo da Central de Operações (COP), da Autarquia de Trânsito e Transporte (CTTU) e da Secretaria Executiva de Defesa Civil (Sedec).
Desde 2021, foram ampliadas as cotas e valores da Gratificação de Atividades Especializadas, criada a Gratificação de Segurança Cidadã e houve o aumento da ajuda de custo para aquisição dos uniformes. Foi implantado também um plano de valorização dos servidores por meio do processo de promoção de carreira. A sede de comando da GCMR foi reformada e recebeu novos equipamentos e mobília.
Em relação ao aperfeiçoamento da formação, foram regulamentadas a Divisão de Inteligência, Contrainteligência, Planejamento e Estatística e a Ronda Escolar. Os agentes da GCMR ainda passaram pelo Curso de Atualização Continuada (CAC).
Em 2024, o prefeito João Campos tomou a decisão de promover estudos e ações necessárias para iniciar o processo de armamento da GCMR, partindo do Grupo Tático de Operações (GTO). Assim, ficam previstas novas atribuições para a Guarda Municipal, como as ações de patrulhamento ostensivo complementares à repressão qualificada, que são de responsabilidade das instâncias estadual e federal.
O processo deverá ser iniciado nas próximas semanas, seguindo o rito legal padrão, que é a celebração de convênio entre a Prefeitura do Recife e a Polícia Federal. Para efetivar o convênio, o município precisa ter corregedoria e ouvidoria específicas instaladas. Além disso, é necessário realizar avaliação psicológica e capacitar os agentes considerados aptos para o manuseio das armas. De acordo com a Prefeitura do Recife, todo agente público de segurança que atuará armado terá de usar uma bodycam, câmera que garante a transparência das ações ostensivas.
No Rio de Janeiro, a Guarda Municipal (GM-Rio) conta com um efetivo de 7.103 guardas, mantendo 33 unidades operacionais entre Inspetorias, Unidades de Ordem Pública e Grupamentos Especiais.
As equipes realizam patrulhas a pé e com cães e utilizam diversos meios de transporte, como viaturas, carrinhos elétricos, quadriciclos, bicicletas e motocicletas. Segundo a Prefeitura, a GM-Rio é considerada a maior Guarda Municipal desarmada do País.