O sinal que o mercado não queria

Alterações de curto prazo sobre o IOF falam mais alto que divergências entre Executivo e Legislativo

Por Larissa Carvalho

O recente episódio envolvendo a elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) pelo governo federal trouxe à tona um antigo problema brasileiro: a volatilidade tributária combinada à fragilidade institucional. Tentar aumentar a arrecadação com base em um instrumento originalmente criado para fins regulatórios foi o estopim de um conflito entre Executivo e Congresso que acabou sendo arbitrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para investidores e grandes grupos empresariais, o sinal enviado foi claro: a previsibilidade do ambiente tributário continua sendo um dos principais riscos operacionais no Brasil.

O caso ganhou tração em maio de 2025, quando o governo Lula publicou os decretos 12.466 e 12.467, elevando significativamente as alíquotas do IOF sobre operações financeiras. A medida atingiu operações de crédito corporativo, câmbio, compras internacionais no cartão de crédito, previdência privada, como o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL), Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs), entre outros instrumentos. A justificativa oficial era o reforço da arrecadação para o cumprimento das metas fiscais, com estimativa de ganhos de R$ 20,5 bilhões em 2025 e de R$ 41 bilhões em 2026.

A reação do mercado foi imediata. Instituições financeiras, grandes empresas e associações do setor produtivo criticaram duramente a medida. Diante da pressão, o governo recuou parcialmente e excluiu o aumento do IOF sobre investimentos no exterior, em uma tentativa de acalmar os ânimos. Mas o estrago institucional já estava feito.

Em um movimento raro de articulação política, o Congresso Nacional reagiu com contundência. No início de junho, deputados e senadores aprovaram — por ampla maioria na Câmara, 383 votos a 98 — um decreto legislativo que suspendeu os efeitos dos decretos presidenciais. Foi o gesto mais incisivo do Legislativo contra uma medida fiscal do Executivo nos últimos anos. O governo, então, recorreu ao STF, por meio de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Coube ao ministro Alexandre de Moraes suspender, liminarmente, tanto o decreto do Executivo quanto a derrubada legislativa. Na tentativa de evitar uma crise institucional mais profunda, Moraes convocou uma audiência de conciliação entre os Poderes — que fracassou.

Em 16 de julho, o STF julgou o mérito da ação e decidiu manter a maior parte dos aumentos, validando as novas alíquotas do IOF. A única exceção foi a exclusão da cobrança sobre operações de forfait — quando o fornecedor vende ao banco o direito de receber um pagamento futuro de outra empresa. Estima-se que a retirada dessa cobrança reduza a arrecadação em R$ 450 milhões já em 2025 e em cerca de R$ 3,5 bilhões em 2026. Mesmo com essa exceção, a decisão do Supremo foi interpretada como uma derrota para o Congresso e um reforço à prerrogativa do Executivo de alterar tributos via decreto.

Essa prerrogativa, no entanto, é o centro do desconforto entre agentes econômicos. Para a maioria dos analistas de mercado, o principal problema não foi o aumento em si, mas a forma como ele foi conduzido. O IOF é um imposto originalmente classificado como regulatório — ou seja, criado para modular comportamentos econômicos, como crédito e câmbio —, mas tem sido frequentemente usado como instrumento arrecadatório. Esse uso híbrido gera incerteza, sobretudo quando ocorre por decisão monocrática do Executivo, sem consulta ao Legislativo.

Na avaliação de Fernando Scaff, advogado especialista em direito tributário e professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), a discussão sobre a função do IOF é mal colocada quando se tenta classificá-lo de forma absoluta. “Nenhum tributo é exclusivamente arrecadatório ou exclusivamente regulatório. O correto é dizer que um imposto tem caráter predominante. No caso do IOF, pode-se afirmar que ele é predominantemente regulatório, mas isso não impede seu uso arrecadatório em momentos específicos”, afirma. Questionado sobre se a Constituição estabelece um limite para a alíquota do IOF, ele responde: “Não exatamente. O teto de alíquota é definido por lei ordinária, não pela Constituição. O Executivo pode, sim, alterar a alíquota por decreto, desde que respeite esse teto”.

Essa flexibilidade é amparada pela Constituição Federal, que também permite o mesmo tipo de mecanismo para tributos como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto de Importação (II) e o de Exportação (IE). “Isso é corriqueiro. O famoso ‘tarifaço’ promovido por Donald Trump, nos Estados Unidos, nada mais foi do que a majoração, por decreto presidencial, dos impostos de importação. A diferença está no grau de institucionalidade e previsibilidade com que essas decisões são tomadas”, completa Scaff.

A decisão do STF de sustentar o decreto presidencial, mesmo após sua rejeição pelo Congresso, levantou críticas sobre o possível excesso de judicialização da política fiscal. Mas, para Scaff, a Corte agiu dentro dos limites constitucionais. “Não me parece ter havido judicialização indevida. O ministro Alexandre de Moraes buscou arbitrar uma crise entre os Poderes. Como não houve acordo, decidiu conforme a Constituição, que não permite ao Congresso sustar um decreto presidencial via decreto legislativo. Quem tem esse poder é o Judiciário. Seria necessário que o Congresso acionasse o Supremo por meio de uma ação própria, o que não ocorreu.”

Do ponto de vista político, a medida agravou a já difícil relação entre Executivo e Congresso. Parlamentares passaram a defender, com mais vigor, propostas que limitam o uso do IOF e de outros tributos extrafiscais por decreto. Há, inclusive, projetos de lei que propõem submeter qualquer alteração relevante sobre esses impostos à aprovação do Legislativo. Na outra ponta, o governo avalia medidas compensatórias, diante das perdas parciais com a decisão do STF, e tenta manter sua estratégia fiscal sem abrir mão da prerrogativa de manobra tributária.

O pano de fundo de toda essa disputa é o contexto fiscal delicado de 2025. Pressionado pelas metas de resultado primário e por resistências no Congresso para aprovar reformas mais amplas, o Executivo tem recorrido a medidas de curto prazo para elevar receitas. Mas esse tipo de solução emergencial acarreta custos intangíveis.

“Não vejo impacto direto na credibilidade fiscal do Brasil, mas sim na segurança jurídica. O episódio mostrou que há desarmonia institucional, e isso afeta diretamente o apetite do investidor de longo prazo”, avalia Scaff.

“O episódio mostrou que há desarmonia institucional, e isso afeta diretamente o apetite do investidor de longo prazo”

Fernando Scaff

O IOF, até agora, segue fora da reforma tributária em curso no Congresso. Não há sinalização de que ele será absorvido ou transformado dentro do novo modelo de tributação do consumo. Enquanto isso, sua existência como instrumento de dupla função — regulatória e arrecadatória — mantém a porta aberta para novos conflitos. E a ausência de parâmetros claros alimenta o risco tributário sistêmico que tanto inibe o investimento no País.

A grande questão, enfim, não é se o IOF pode ou não ser usado para arrecadar, mas sim por quanto tempo o Brasil continuará operando um sistema tributário em que decisões fiscais de alto impacto são tomadas sem previsibilidade, sem debate e sem estabilidade institucional.

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