O peso dos militares

Governo mexe pouco na previdência militar, e privilégios em relação aos civis continuam causando déficit ao País

Por Françoise Terzian

Nenhuma voz foi tão transparente e direta, embora tenha soado inaudível para a maioria dos intempestivos ouvidos que esperavam muito mais do pacote fiscal anunciado pelo governo no final de novembro, que a de Simone Tebet, ministra do Planejamento e Orçamento. “É o ajuste fiscal possível, no aspecto técnico e político.” Repetindo: possível. Mas não adiantou. O mercado se demonstrou nervoso, o que fez o dólar disparar e atingir recorde histórico. 

Embora a economia prometida de R$ 70 bilhões em dois anos seja bem-vinda, ela não é suficiente. “Não acho que vá chegar a esse valor e, vale dizer, mesmo que fosse atingido, não seria suficiente para cumprir as metas de 2025 e 2026 e recobrar as condições de sustentabilidade da dívida. O pacote contém medidas positivas, sim, e sensíveis politicamente, o que mostra o compromisso do governo com a questão fiscal. Mas será preciso fazer bem mais”, avalia Felipe Salto, economista-chefe da Warren. Esse volume de contenções não resolve o objetivo de reequilibrar a dívida em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) no horizonte próximo. A conta não fecha e, pelo visto, continuará a não fechar. 

Há um ponto, em particular, que deixou o anúncio com um gosto ainda mais amargo — os militares. Mudanças que os envolvem representarão menos de 1% do pacote fiscal, resultando em um corte anual de R$ 2 bilhões aos cofres públicos. “Foi tímida a proposta trazida para a questão dos militares, ainda que na direção correta. A questão das pensões, como é hoje, é um escárnio. A idade mínima, no entanto, tinha de ser mais elevada”, analisa Salto.

Tímido também foi o termo usado por Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central, para definir o pacote. “Isso aconteceu porque a equipe econômica enfrentou muita reação dos ministros que não queriam ter cortes em suas pastas. Embora limitado, o pacote é positivo. Haddad prometeu algumas coisas complementares mais para frente, mas não acredito que elas envolverão os militares, cujo corte já ajuda em alguma coisa”, define Meirelles. 

O ideal, na opinião de Salto, seria colocar contribuições maiores para melhorar o déficit, hoje na faixa de R$ 50 bilhões a R$ 60 bilhões. “Os militares ficaram de fora da reforma de 2019, com mudanças cosméticas, à época, e algumas poucas mais relevantes. Agora, o risco é de novo avançar muito pouco nesse tema, perdendo mais uma oportunidade de equiparar esses servidores aos demais”, alerta.

Previdência militar deficitária

Em 2023, por exemplo, de acordo com números do Tribunal de Contas da União (TCU), as receitas do sistema de previdência dos militares alcançaram R$ 9,1 bilhões, enquanto as despesas ficaram em R$ 58,8 bilhões, resultando em um déficit de R$ 49,7 bilhões. Se o sistema previdenciário brasileiro já é desequilibrado, o militar é ainda mais, pois é o que apresenta a maior distância entre gasto e arrecadação.

Para o economista Marcus Pestana, vice-presidente da Comissão Especial da Reforma da Previdência durante o governo de Michel Temer e hoje diretor-executivo do Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado com o intuito de ampliar a transparência nas contas públicas, o ponto é que todo regime previdenciário tem que ter dois predicados: ser justo e sustentável. “E a previdência no Brasil não é uma coisa nem outra”, afirma. Para ele, o sistema previdenciário brasileiro é um “case mundial crônico”. 

“No caso dos militares, eles não se aposentam, vão para a reserva. Ou seja, se o País entrar em guerra, eles se ‘desaposentam’. Há uma diferença do regime dos civis por conta da reconvocação no caso de um conflito. O problema é que o déficit é alto para um universo pequeno de pessoas. É inviável”, explica Pestana.

Segundo o TCU, o déficit per capita do regime de previdência dos militares é 16 vezes superior ao do Instituto Nacional do Seguro Social, mais conhecido como INSS. Enquanto isso, cada aposentado ou pensionista do INSS gera um déficit per capita de R$ 9,4 mil por ano. No caso de servidores públicos civis, esse valor é de R$ 69 mil. Já os militares têm um déficit anual de R$ 159 mil para cada beneficiário.

Pestana lembra ainda que, historicamente, os militares se aposentam cedo e deixam a aposentadoria como “herança” para as filhas não casadas. “Digamos que ele entra com 20 anos, se aposenta com 48 e vive até os 80 ganhando 100%. Esse valor depois é transmitido para a viúva e, posteriormente, para a filha. A conta não fecha.”

O que se busca, observa Pestana, é corrigir essa situação histórica. Ele diz que a reforma da previdência é um tema recorrente desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando, em 1998, a idade mínima dos civis não foi aprovada por um equívoco do então ministro do Planejamento Antônio Kandir. “Foi um acidente caricatural irônico”, recorda. Pestana ressalta que, em diferentes épocas, tanto os bolsonaristas quanto a extrema esquerda foram contra a reforma. 

Agora, no que se refere aos militares, dentre os avanços anunciados está a idade mínima para um militar se aposentar, que passa a ser 55 anos. “No entanto, isso só ocorrerá daqui 10 anos”, frisa Pestana. O próprio TCU já afirmou ser necessário “repensar os privilégios” aos militares. 

Outros enxugamentos

Em acordo com as Forças Armadas, o pacote de ajuste fiscal trouxe ainda alterações como o fim da chamada “morte ficta”, instrumento que permite que os militares condenados por crime ou expulsos do serviço sejam tratados, para fins de pensão, como se tivessem falecido. Sendo assim, suas famílias recebem pensão. “Nós concordamos em acabar com a morte ficta, que, do ponto de vista da moralidade pública, é importante nós reconhecermos como um resquício do passado que precisa ser superado”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante o anúncio.

O pacote de medidas ainda fixa em 3,5% da remuneração a contribuição do militar para o Fundo Nacional de Saúde (FNS) até janeiro de 2026 e extingue a transferência de pensão.

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