O cabo de guerra da reforma administrativa

Mudanças no funcionalismo público aliviariam as contas do governo federal, mas mexer com direitos dos trabalhadores pode fragilizar a gestão de Lula

Por Alessandro da Mata

O Brasil tem grande expectativa pela reforma administrativa. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020 procura reduzir despesas e tornar a administração pública mais eficiente, além de estimular investimentos e a competitividade em benefício da economia nacional. Embora diversos setores da sociedade considerem a alteração importante para o desenvolvimento e a sustentabilidade do País, falta consenso entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, afinal os servidores públicos serão afetados. As consequências do projeto levam risco imediato à governabilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A PEC 32/2020 segue o caminho das mudanças estruturantes para a modernização do País — vem na esteira das reformas trabalhista, previdenciária e tributária. A proposta altera cargos e carreiras dos servidores públicos, corta o que alguns chamam de “privilégios”, incentiva a alta performance e a meritocracia, além de prever habilitar o Estado a serviços sociais mais qualificados e a um custo mais baixo. O projeto também leva maior segurança jurídica aos gestores privados para prestação de serviços a entes públicos, ampliando a capacidade produtiva de setores da indústria.

A iniciativa de alteração à Constituição Federal é oriunda da gestão do ex-ministro Paulo Guedes, no Ministério da Economia, tem apoio de entidades do setor privado, mas também duras críticas de representantes do funcionalismo. Ela contempla União, estados, Distrito Federal e municípios e não esgota as mudanças mais requeridas. Os supersalários, especialmente do Judiciário, estão em outra proposta.

A última mudança no regime jurídico dos servidores públicos no País, via Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, ocorreu em 1995. Agora, o enxugamento dos custos com servidores da máquina pública aliviaria o cumprimento da meta fiscal — embora não haja estimativa oficial do impacto.

A reforma administrativa ganha ênfase diante do aumento de gastos do governo em 2023, por causa do foco na retomada de obras e nos programas sociais, com ampliação dos valores pagos em precatórios e com menos receitas extras. Para o time de economistas do Itaú, conforme o relatório macroeconômico Revisão de Cenário Mensal Brasil: 10 temas para 2024, a expectativa é de déficit de 0,8% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2024 e eventuais medidas de contingenciamento para compensar a frustração com a arrecadação.

O documento do Itaú estima crescimento entre 2% e 2,5% do limite real de gastos do governo. O banco vê na reforma administrativa aspecto significativo do arcabouço fiscal, mas não acredita que o tema seja analisado e aprovado no Congresso Nacional no primeiro semestre deste ano, embora considere como alternativa até 2025 a aprovação de uma reforma administrativa com impactos do aumento no tempo de progressão e redução do salário inicial dos servidores.

Já a XP Investimentos prevê crescimento do PIB em 1,5% em 2024. Para Tiago Sbardelotto, um dos economistas da corretora, é difícil que a PEC 32/2020 seja votada neste ano e tenha impacto imediato expressivo na meta fiscal. “Em uma reforma administrativa, a redução do número de carreiras e a maior flexibilidade para atuação do servidor público, a aproximação do salário da base do funcionalismo ao do setor privado e incentivos reais para a busca de novos cargos são medidas favoráveis à produtividade, custos menores e economia real para as administrações públicas. Isso ajudaria no cumprimento do controle de gastos. Mas, [para notar] grandes benefícios mesmo, só a longo prazo”, avalia.

Jogo político

O Poder Executivo trabalha com a expectativa de arrecadar R$ 20 bilhões em 2024 e projeta que receitas e despesas se anulem. Caso isso não ocorra, o governo federal previu um contingenciamento de até R$ 23 bilhões para evitar contratempos mais rigorosos acerca da meta fiscal.

O teto de gastos da União é de R$ 1,87 bilhão para o ano. Pelo novo arcabouço fiscal, se o governo não cumprir a meta, faz-se obrigado a reduzir o gasto no ano seguinte ou rever a meta. Nesse caso, a gestão Lula pode optar pela ampliação da arrecadação — entenda-se “tributação” —, que geralmente entrega mais inflação e piora do PIB.

O contexto, portanto, tornou a PEC prioridade para o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, visto que o governo federal se mostra mais reticente quanto às liberações de emendas ao Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) e ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2024.

As emendas são uma forma de deputados e senadores enviarem dinheiro para obras e projetos em suas bases eleitorais e, com isso, ampliar seu capital político. A pressão, especialmente dos partidos de oposição ao PT, se acentua perto de eleições, como as municipais deste ano.

De todo modo, a reforma administrativa ainda carece de maior consenso na Câmara dos Deputados. Dentro do próprio PL, partido ao qual o ex-presidente Jair Bolsonaro é filiado, há resistências. “Um tema como esse leva tempo de maturação. Não acredito que esteja no nível de votação para este ano. O governo atual não concorda com a proposta. Temos que encontrar uma condição de resguardar conquistas e qualificar o gasto público, com um serviço mais ágil e eficiente, pagando por meritocracia”, afirma Joaquim Passarinho, vice-líder do PL na Casa.

A pauta do primeiro semestre de 2024 da Câmara já está praticamente comprometida. Além do PLDO e do PLOA, há a Medida Provisória (MP) da Reoneração da Folha, o fim do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) e os projetos de lei complementar da reforma tributária. “Entendo que a chance de a PEC ser votada ao longo do governo Lula é bastante pequena. O tema ainda divide boa parte das principais lideranças da Casa. A questão central é que a PEC atinge não apenas o Executivo, como também o Legislativo e o Judiciário. Para ela avançar, será necessário haver um pacto entre representantes da cúpula dos Três Poderes, que atualmente está longe de existir”, diz o head do time de Análise Política da Warren Rena, Erich Decat.

Como contraponto à PEC, o governo Lula alega que vem promovendo a modernização da máquina pública. Recentemente, uma instrução normativa autorizou a troca do controle de ponto pela produtividade. Há previsão de lançamento de um sistema de avaliação de desempenho dos servidores públicos que poderá ser acessado por toda a população após o primeiro semestre deste ano.

“O ideal seria o governo atual constituir um grupo multidisciplinar, com gente, inclusive, de fora do Poder Executivo, para uma nova proposta. Via reforma da Constituição Federal, o mais necessário é limitar cargos comissionados, acabar com a aposentadoria compulsória como sanção para magistrados e membros do Ministério Público, definir critérios objetivos da permanência do servidor por meritocracia e evitar a burla ao teto remuneratório, como o subsídio dos ministros do Supremo. Há categorias de servidores recebendo quase R$ 90 mil por mês. Tem que se estabelecer um limite”, pondera o doutor e mestre em Direito de Estado e professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Márcio Cammarosano.

Mas o governo federal já definiu que direção seguir — e não será de confronto com o servidor público, pois não quer perder o “controle do vestiário” nesse jogo. Por isso, trata do tema por meio do Programa de Gestão e Desempenho (PGD), que dispõe dos regramentos para objetivos e metas de desempenhos e demissões do funcionalismo. A questão é que a iniciativa não fala em regramento obrigatório para as próximas administrações.

“Há forte resistência do funcionalismo público em relação a essa PEC, que penaliza e enfraquece o servidor. Não acredito que os deputados vão entrar nessa em ano eleitoral. Trata-se de uma proposta muito maldosa, que não prosperou no governo anterior. Para nós, uma boa gestão não significa tirar direitos, mas sim evitar desperdícios“, argumenta o vice-líder do governo na Câmara e coordenador da bancada petista na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Alencar Santana.

Quanto ao projeto pelo fim dos supersalários no setor público, matéria que aguarda votação no Senado Federal, onde o presidente Rodrigo Pacheco quer que a apreciação ocorra simultaneamente à da PEC, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é favorável, ainda que sua opinião sobre o tema não seja um posicionamento absoluto no governo federal. Nesse cabo de guerra, a disputa vai longe.

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