Estudo inédito reúne dados sobre reflexos do crime organizado

O grande desafio contemporâneo que une Estado, setor privado, mídia e sociedade civil é o de blindar a economia formal da economia do crime

Por Nina Gattis e Andrezza Pugliesi 

Facções que funcionam como verdadeiras corporações, economia do crime e operação transnacional e ilegal de produtos: a insegurança no Brasil se tornou palpável. Não à toa, o País faz parte do rol dos 20 mais violentos do planeta, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Pensando nos reflexos desse cenário inflamado, a Esfera Brasil, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), desenvolveu um estudo com informações inéditas sobre a segurança pública no Brasil, principalmente no que diz respeito à estrutura do crime organizado, à governança competente, aos impactos na economia e, para mais, às soluções eficazes possíveis. 

Os dados reunidos pelo estudo podem desanimar à primeira vista. Somente em território nacional, segundo levantamento deste ano realizado pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), existem 72 facções criminosas vinculadas ao narcotráfico, com destaque para o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Mas o tamanho do problema é só a ponta do iceberg

“A insegurança da população é um reflexo da atuação do crime organizado. Além de medidas concretas e objetivas de prevenção, é preciso olhar para a raiz, para a causa dos crimes e entidades, desde os presídios até as atividades de mineração ilegal, entre outras atividades comerciais”, explica o advogado criminalista e integrante do Comitê de Segurança Pública da Esfera Brasil, Pierpaolo Bottini.

O cerne do problema

Com receita bruta na ordem dos bilhões, as facções criminosas se tornaram negócios muito lucrativos aos que nelas se envolvem. Prova disso é o potencial faturamento de R$ 335,1 bilhões em caso de venda, para a Europa, de toda a cocaína que passa pelo território brasileiro anualmente. O valor, estimado pelo FBSP com base em dados do UNODC, traz ainda uma segunda informação preocupante, já que parte da droga, contudo, é consumida dentro do próprio Brasil. O País já é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, o primeiro lugar do ranking.

Além disso, a proximidade com países produtores de cocaína, como Colômbia, Bolívia e Peru, torna o Brasil um ator estratégico tanto para consumo interno quanto para escoamento do produto. 

Apesar de muito lucrativo, o tráfico de cocaína, como se sabe, não é único e se soma a uma série de outros ilícitos. O estudo inédito identifica ao menos 20 produtos legais e ilegais com fluxos ilícitos que perpassam as regiões brasileiras com origem ou destino em diversos países da América do Sul, América do Norte, Europa, Ásia, África e Oceania — ou seja, em todos os continentes do planeta. 

As atividades de extração ilegal de ouro e outros minérios, por exemplo, constituem um mercado altamente lucrativo e estratégico para organizações criminosas, que viram na fragilidade da cadeia de regulação uma porta para a lavagem de dinheiro. Estima-se que o faturamento anual dos garimpos ilegais no Brasil varie entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões, segundo dados do Ministério de Minas e Energia de 2019.

Outro mercado criminal organizado altamente lucrativo no Brasil é o do contrabando de cigarros, fabricados majoritariamente no Paraguai.

Para vencer a comercialização ilegal, independentemente do ramo, “é necessário um esforço conjunto na implementação de bases, tanto da Polícia Federal (PF) quanto das Forças Armadas, para controlar as fronteiras e evitar o uso, em especial, da região Norte como meio de evasão de drogas ou de entrada”, avalia Bottini.

Ainda, os criptoativos representam um mercado em constante expansão, movimentando de maneira ilícita cerca de US$ 24,2 bilhões, o que representa 0,34% das transações com esses ativos pelo mundo.

Os prejuízos

Os danos ao setor privado com a sonegação de impostos e as perdas de concessionárias de serviços públicos decorrentes da atuação do narcotráfico são um dos reflexos do crime organizado. Movimentos como esses resultaram no ônus de R$ 453,5 bilhões a empresas em 2022, de acordo com estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) em parceria com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan).

Se somados os gastos do setor privado com seguros, segurança privada e a diminuição do número de jovens, vítimas predominantes dos homicídios, na população economicamente ativa (PEA), o Banco Mundial e o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do FBSP, respectivamente, estimam que os custos diretos e indiretos da violência giram em torno de 1,8% e 4% do Produto Interno Bruto (PIB), a depender do que se considera no cálculo.

A governança responsável

No Brasil, inexistem mecanismos formais de coordenação que façam emergir metas e prioridades comuns entre os diferentes stakeholders estatais cujas ações têm impacto direto na eficiência e na efetividade da segurança pública. Como resultado, o País tem falhado no enfrentamento às organizações criminosas, porque há uma confusão entre instâncias de tramitação. A segurança pública deve ser, de fato, uma atribuição compartilhada entre União, estados, Distrito Federal e, subsidiariamente, municípios.

Hoje, segundo o estudo, o Brasil conta com ao menos 1.595 diferentes instituições de segurança pública strictu sensu previstas pela Constituição Federal, mas é preciso considerar que existem várias outras redes e organizações estratégicas para o sucesso no combate ao crime organizado, em especial aquelas que possuem poder de polícia na fiscalização e regulação de fluxos financeiros, administrativos, territoriais e de produtos e mercadorias, caso de Banco Central, Receita Federal, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), prefeituras, agências reguladoras de concessões e serviços públicos, ministérios públicos, Forças Armadas, tribunais de contas, organismos internacionais multilaterais, entre outras.

O maior dilema é que, diante de tantas organizações, não há coordenação federativa capaz, técnica e juridicamente, de integrar informações e otimizar o combate ao crime organizado. Mas, na avaliação de Bottini, apenas a cooperação entre órgãos não basta: “É preciso identificar os recursos e congelá-los. Combater a lavagem de dinheiro, fechar as portas para a utilização, para o financiamento das organizações criminosas. Além de criminalizar a conduta, é preciso trabalhar com os profissionais atuantes nas áreas mais sensíveis à lavagem de dinheiro para haver uma colaboração de identificação de atividades ilícitas”.

Nesse sentido, é importante destacar a relevância que o Coaf assumiu na última década. Entre 2014 e 2023, o número de comunicações formais recebidas pelo órgão aumentou 569%. Desde 2020, o Conselho tem recebido anualmente entre seis e sete milhões de comunicações de operações financeiras, sejam elas comunicações de operações suspeitas (COS) ou comunicações de operações em espécie (COE). No entanto, apenas uma pequena parcela das COS recebe análise humana, conforme relatório do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) de 2023.

O Coaf não consegue dar vazão ao enorme potencial que suas ferramentas de monitoramento e análise permitem aportar ao combate ao crime organizado. Mesmo assim, produziu 16.411 Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) em 2023. Em uma demonstração do esforço de trabalho conjunto e de troca de informações, a PF respondeu, sozinha, por 33,5% do total de RIFs produzidos pelo Coaf no mesmo ano, sendo a instituição que mais trabalha em cooperação com o órgão.

Em uma comparação entre as polícias judiciárias brasileiras, a PF, com efetivo de 12.900 policiais, teve 73,3% de seus pedidos de intercâmbio eletrônico atendidos pelo Coaf, o que totaliza 4.958 RIFs. Já as Polícias Civis, cujo efetivo é de 95.908 policiais, tiveram 64,1% das solicitações eletrônicas atendidas, para um total de 7.055 RIFs.

Também muito relevante na estrutura da governança do combate ao crime organizado, a PF, entre 2023 e 2024, implementou 19 novas bases das Forças Integradas de Combate ao Crime Organizado (Ficcos), que, somadas às já existentes, totalizam 31 bases em operação. Também criou cinco novas bases de Grupos Especiais de Investigações Sensíveis (Gise), chegando a 20 bases em operação.

Os dados sobre a produtividade da PF e do Coaf demonstram a importância da informação como o mais central dos vetores do combate ao crime organizado. Entretanto, o uso de mecanismos de compartilhamento de informações entre todas as instituições com atribuição legal no enfrentamento às organizações criminosas é, ainda, um tanto restringido pelas regulamentações de compartilhamento de dados e pela falta de compreensão das regulamentações aplicáveis. Há dúvidas legais sobre quando e como compartilhar releases de inteligência para a instrução penal, por exemplo.

Também não há unificação dos procedimentos relativos às investigações de crimes cibernéticos e, dessa forma, cada delegacia ou polícia judiciária tem um modus operandi próprio. Na inexistência de informações e protocolos padronizados, os vários sistemas de informação e inteligência disponíveis acabam por contribuir de forma bem menos intensa do que suas funcionalidades e tecnologias permitiriam.

As soluções possíveis

O conjunto estratégico de medidas que podem melhorar o cenário da segurança pública no País passa por uma combinação de soluções que devem ser colocadas em prática concomitantemente. O diagnóstico, resultado do estudo produzido pela Esfera Brasil e pelo FBSP, será entregue em mãos às autoridades e órgãos responsáveis, com vistas à implementação.

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