Recente decisão do STF abre oportunidade para otimizar serviços de governos, mas pode levar a enfraquecimento do combate à corrupção e piora na atuação do Estado
Por Carlos Tautz
Ainda é cedo para ter claros quais serão todos os impactos da queda da obrigatoriedade da aplicação de regimes jurídicos únicos (RJUs) nas carreiras dos governos federal, estaduais e municipais. Tanto o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), responsável pelas administração de carreiras no serviço público federal, quanto especialistas de mercado concordam que é necessário aguardar os próximos passos do Supremo Tribunal Federal (STF). Por enquanto, dizem, deve-se aguardar a regulamentação da decisão, definir novas políticas públicas e até considerar a possibilidade de elaborar novas leis para regulamentar a contratação dos futuros trabalhadores públicos, em consonância com o novo entendimento da Corte.
Mas pesquisadores, advogados trabalhistas e sindicalistas apontam que a nova situação, criada após decisão em novembro passado do STF, vai gerar problemas que vão desde a terceirização completa das carreiras até o fim da capacidade de funcionários com estabilidade garantida em lei resistirem e denunciarem casos de corrupção, passando por atingir a profissionalização do serviço público e até dificultar a aplicação e a continuidade das políticas e programas oficiais.
Todo esse cenário de incerteza começou a vigorar em 6 de novembro passado, quando o STF decidiu que é válida a Emenda Constitucional (EC) 19/1998. A EC acabou com a obrigatoriedade da aplicação de RJUs para servidores da administração pública direta, autarquias e fundações públicas federais, estaduais e municipais.
O RJU foi criado em 1990 para unificar as diversas formas de contratação que àquela época existiam no âmbito dos governos. Ele garante estabilidade para o funcionalismo. A nova interpretação do Supremo agora permitirá aos três níveis de governo contratar funcionários tanto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que atualmente rege as relações de trabalho em empresas privadas, quanto pelo regime estatutário — que define essas relações no setor público. A decisão do STF, que não afeta os estatutários atuais, permitirá, por exemplo, aos governos flexibilizar as formas de contratação e demissão.
A decisão ainda precisa ser regulamentada pela emissão de um acórdão — que é uma espécie de regulamentação da decisão. O regimento interno do STF, manda o acórdão, cujo relator será o ministro Gilmar Mendes, ser emitido em até 60 dias após a resolução. A decisão ocorreu em 6 de novembro. A Corte esteve em recesso entre 20 de dezembro de 2024 e 31 de janeiro de 2025.
O MGI informou a esta reportagem que aguarda a publicação do acórdão para se pronunciar sobre o teor da decisão e avaliar possíveis desdobramentos. A Fundação Dom Cabral (FDC) analisa que “o Supremo abriu a porta. Tudo vai depender das políticas de gestão pública. Se essa porta vai ser bem utilizada para melhorar o serviço público, não sabemos”, observa Humberto Falcão Martins, professor da instituição.
“Usar só um vínculo estatutário de servidor é muito limitador para uma série de naturezas distintas de atividades que o Estado desenvolve. Como sob a administração pública desenvolvem-se muitos tipos de naturezas diferentes de atividades, isso em princípio requereria tipos de vínculos também diferentes, o que antes era vedado sob o RJU”, explica Martins.
O professor estima que os municípios talvez se adiantem ao acórdão. “Eles sentem mais acentuadamente o engessamento do RJU. Talvez os estados possam seguir em níveis distintos de consequências. Isso chama o governo federal na responsabilidade de reordenar esse quadro, eventualmente propondo uma lei complementar que regulamente distintos tipos de vínculos”, completa.
Mas, entre a representação sindical do funcionalismo e setores da universidade que pesquisam as relações de trabalho, a avaliação vai em sentido contrário. “O STF se mostra minúsculo em relação ao neoliberalismo, legalizando ações destrutivas em relação ao trabalho e às empresas públicas”, afirma Ricardo Antunes, professor-titular de Sociologia do Trabalho na Universidade de Campinas (Unicamp) e um das maiores autoridades brasileiras em relações do trabalho.
“A recente decisão do STF deve ser lida à luz de outras medidas precarizadoras na história recente de nossas lutas, sobretudo em razão de desde 2015 o STF permitir a terceirização dos serviços públicos por meio de organizações sociais, como se dá largamente no segmento da saúde”, diz Gustavo Seferian Scheffer Machado, professor de Direito do Trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN).
“Declarar apressadamente o fim do RJU é um equívoco: ele segue existindo, e seremos nós, do movimento sindical, resistindo e afirmando a sua indispensabilidade, que precisaremos, pela política, garantir a continuidade de concursos nesse regime”, acrescenta Machado. Ele representa uma das mais numerosas categorias do funcionalismo público federal: cerca de 320 mil professores e professoras, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Uma nota técnica da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Serviço Público Federal (Condsef) alerta sobre uma gravidade em potencial, embutida na provável futura redução do número de funcionários públicos com estabilidade funcional.
“A redução do número de agentes com estabilidade, somada ao conflito em torno do orçamento público marcado por disputas políticas, interesses eleitorais e, em alguns casos, interesses individuais e pouco republicanos é um fator que pode levar à provável degradação dos serviços públicos e à redução dos direitos dos servidores”, diz a nota, de 29 páginas, assinada pelos advogados Camilla Cândido, José Loguercio e Mádila de Lima.
Nota do Condsef
O documento aponta cinco pontos cruciais em que o fim da obrigatoriedade do RJU impactaria o funcionalismo e os serviços públicos:
- sobre a viabilidade da previdência do funcionalismo público: “Caso não sejam realizadas novas contratações de servidores estatutários, que contribuem para o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), ocorrerá um aprofundamento do déficit atuarial, o que impactará diretamente a sustentabilidade do RPPS”;
- sobre a garantia a carreiras específicas de Estado: “O conceito de ‘carreiras típica/finalística/exclusiva’ não possui uma definição formal ou jurídica consolidada”;
- sobre as categorias mais atingidas pela decisão: “Os reflexos da decisão do STF impactarão principalmente os cargos dos profissionais da educação, saúde e assistência social, que atualmente têm sofrido com as maiores flexibilizações, devido a contratações temporárias e por empresas terceirizadas”;
- sobre a redução de funcionários em um quadro já deficitário: “Já os governadores e prefeitos tendem a reduzir o número de cargos públicos”;
- sobre a violação da Lei de Responsabilidade Fiscal: “Uma das poucas restrições que ainda limitavam a terceirização era o regime jurídico único e as legislações específicas das carreiras. Eventual gestor público que contratasse pessoa para desempenhar atribuições previstas em cargo público incidiria em violação ao preceito constitucional da obrigatoriedade do concurso público”.