A mãe das reformas

Responsabilidade fiscal é essencial para o crescimento econômico sustentável

Felipe Salto

As contas públicas brasileiras seguem regras próprias definidas, principalmente, na Constituição Federal, na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF – Lei Complementar nº 101/2000), na Lei Geral de Finanças Públicas (Lei nº 4.320/1964) e no Novo Arcabouço Fiscal (Lei Complementar nº 200/2023). 

Apesar destas e de outras importantes normas em vigor, o desafio de reequilibrar as finanças do país e a tarefa de planejar e financiar o desenvolvimento econômico e social pendem de atualização e modernização.

O Orçamento público tornou-se um processo pouco transparente, complexo e distante da realidade e dos desafios do país. O grau elevado de rigidez orçamentária, o crescimento dos gastos obrigatórios e a redução dos espaços para investimentos compõem uma situação de verdadeiro piloto automático.

A Constituição reserva ao Poder Executivo a tarefa de elaborar e enviar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA). Nela, constam as previsões para as receitas públicas e fixam-se as despesas pretendidas para o ano seguinte. Além do PLOA, o Executivo também deve encaminhar proposta para as Diretrizes Orçamentárias (o PLDO) e para o Plano Plurianual (ou PPA). 

Essas três leis compõem o arcabouço orçamentário a orientar todas as ações da Administração Pública. As políticas públicas pretendidas, a partir das prioridades estabelecidas e dos cenários econômicos traçados, devem estar contempladas ali. A Lei nº 4.320/1964, por sua vez, estabelece critérios, definições e procedimentos para a elaboração e execução do Orçamento. A LRF e o Novo Arcabouço Fiscal, atualmente, dão conta das chamadas regras fiscais. 

Hoje, são duas as principais regras – um limite para o crescimento das despesas e uma meta para o resultado primário (receitas menos despesas, mas sem contar os juros pagos sobre a dívida pública). O limite para o crescimento dos gastos é calculado assim: 70% vezes a variação real das receitas líquidas passadas. A meta de primário, por sua vez, é definida e fixada na LDO e deve estar associada ao alcance das condições de sustentabilidade da dívida pública em relação ao PIB.

Como se vê, não faltam regras, normas, legislações e balizas ao comportamento das contas públicas. Falta, no entanto, a convicção a respeito da importância da responsabilidade fiscal permanente, condição essencial para o crescimento econômico sustentável. 

O atual governo tem conseguido aprovar medidas importantes, sob a batuta do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e de sua equipe. Cito a revisão do benefício baseado no ICMS que erodia a base de tributação de impostos federais, a nova lei de transações tributárias, a volta do voto de qualidade no Carf (órgão que cuida do contencioso administrativo tributário federal), a tributação de fundos fechados ou exclusivos e das offshores, entre outras. 

Do lado dos gastos, entretanto, diversas iniciativas pretendidas pelo governo foram barradas pelo Congresso. Veja-se, por exemplo, o pacote fiscal de novembro de 2024. Ele continua até mesmo proposta para reformar a previdência dos militares e limitar os chamados supersalários no serviço público.

Para 2025 e 2026, na Warren, prevemos déficits de 0,6% e 0,7% do PIB, respectivamente. São saldos primários negativos que não assustam, mas condizem com uma situação de crescimento contínuo da dívida pública em proporção do PIB. Dívida, vale dizer, que se situa bem acima da média dos países em mesmo estágio de desenvolvimento. Caminhamos para mais de 80% do PIB, no conceito do Banco Central do Brasil, com um déficit total, incluindo os juros, de 8% do PIB. 

A presença de juros reais elevados é a explicação para esse fardo dos gastos públicos a pesar sobre o déficit e a dívida. Ela resulta, entretanto, de uma perspectiva ainda distante da ideal para as contas públicas primárias. O objetivo primordial da política fiscal, como declarado no próprio contexto do Novo Arcabouço Fiscal, é retomar a geração de superávits primários.

Na presença de juros reais elevados, é preciso restabelecer um resultado primário mínimo, em alguns anos. Esse resultado positivo – e, antes, o próprio convencimento dos financiadores da dívida pública sobre tal rumo – permitiria um equilíbrio macroeconômico com juros mais baixos. A dívida/PIB se estabilizaria e as perspectivas de crescimento econômico seriam mais elevadas.

Mas, como chegar lá? 

O desafio é forjar um plano mais ousado e completo de consolidação fiscal. Ele passa por rever indexações, vinculações e gastos que já se mostraram ineficientes. Passa, também, pela revisão dos gastos e subsídios tributários mantidos pelo país. Além disso, as emendas parlamentares devem retomar padrão observado até pouco tempo atrás. Saíram de controle.

O Orçamento público, hoje, contém 95% de despesas mandatórias ou, de alguma maneira, impossíveis de serem cortadas no curto prazo, apenas por decisão gerencial. O restante também acaba, cada vez mais, comprometido por inovações como as emendas impositivas.

A tarefa de reformar o Orçamento e de promover uma consolidação fiscal é prioritária. Os conceitos, processos e definições da Lei nº 4.320/1964, que data ainda do Governo João Goulart, devem ser ajustados e modernizados. Por exemplo, qual a razão para uma emenda parlamentar ser considerada despesa obrigatória, enquanto um gasto com investimentos em infraestrutura figurar no rol de dispêndios discricionários e, portanto, passíveis de contingenciamento? O Orçamento não é, na sua inteireza, obrigatório? Por que há despesas e despesas, digamos? 

O primeiro passo para resolver a questão é desenhar uma nova Lei Geral de Finanças Públicas e restabelecer um modus operandi, no Orçamento, alinhado à previsão constitucional. O Ministro Flávio Dino vem avançando muito na questão das emendas parlamentares. Mas uma reforma mais ampla dependerá de convicção e de projeto consistente apresentado pelo Executivo ao Congresso. 

A construção de consensos nessa matéria é complexa, porque o tema é árido e a agenda legislativa tem sido tomada por interesses alheios aos grandes temas nacionais. Contudo, é possível que a mãe das reformas encontre lugar, a partir da realidade. Ela sempre se impõe.

Felipe Salto é Economista-Chefe da Warren e ex-Secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo.

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