Os limites da sustentabilidade fiscal

Com rigidez orçamentária e pressão sobre as contas públicas, estados recorrem a soluções como a transação tributária para ampliar receitas sem elevar impostos

Por Barbara Câmara

A combinação de baixo crescimento econômico, aumento contínuo das despesas obrigatórias e rigidez orçamentária tem colocado o Brasil diante de um impasse fiscal que não se limita ao governo federal. Com recursos mais escassos e responsabilidades crescentes, estados e municípios enfrentam o desafio de manter as próprias contas em ordem sem sacrificar serviços públicos essenciais.

Para Alexandre Andrade, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), o problema central está no crescimento acelerado das despesas obrigatórias. “Alguns agregados da despesa obrigatória apresentam ritmo de crescimento acima dos limites definidos no arcabouço fiscal, e isso tem comprimido cada vez mais o espaço para as despesas discricionárias no orçamento. No limite, pode comprometer o funcionamento da máquina pública”, afirma.

A nova regra fiscal, em vigor desde 2023, buscou estabelecer limites mais flexíveis que o antigo Teto de Gastos, mas a questão de fundo permanece. “A regra fiscal evidencia as questões que precisam ser atacadas na estrutura da despesa pública, de forma que a trajetória de crescimento dos gastos seja sustentável no tempo”, observa Andrade. Segundo ele, sem revisão nos gastos obrigatórios, a continuidade de déficits sucessivos comprometerá a credibilidade do País. “À luz dos cenários de médio prazo publicados pela IFI, de 2027 a 2035 não ocorreria superávit primário em nenhum momento. Isso significa mais dívida e mais incerteza”, alerta.

Transações tributárias

Nos estados, a equação se repete, com agravantes. Muitos ainda carregam passivos previdenciários relevantes, enfrentam limites constitucionais rígidos para despesas com pessoal e convivem com dependência acentuada das transferências federais.

Diante de um contexto desafiador, iniciativas como o Acordo Paulista, liderado pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP), têm chamado a atenção. Baseado na lógica da transação tributária — instrumento legal para negociação de débitos inscritos em dívida ativa —, o programa renegociou R$ 54,7 bilhões em seu primeiro ano, com foco inicial nos grandes devedores do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Para a procuradora-geral Inês Coimbra, o programa inaugura uma nova fase na relação entre estado e contribuintes ao substituir a lógica uniforme dos parcelamentos tradicionais por condições calibradas, conforme a realidade financeira de cada caso, fortalecendo a justiça fiscal e a eficiência arrecadatória. 

A criação de um setor exclusivo para o Acordo Paulista, aliado a soluções tecnológicas desenvolvidas para cada edital, foi decisiva para viabilizar essa mudança de paradigma. “A implementação do Acordo foi pautada em uma mudança de cultura institucional, inaugurando uma nova fase de consensualidade na resolução de litígios tributários”, avalia Coimbra.

Segundo levantamento técnico da Receita Federal, atualmente 19 estados brasileiros já regulamentaram suas próprias modalidades de transação tributária, refletindo um movimento mais amplo de modernização da gestão fiscal. Essas iniciativas buscam ampliar a recuperação de receitas sem elevar a carga tributária, ao mesmo tempo em que evitam a judicialização excessiva das dívidas.

A procuradora-geral acrescenta que os próximos passos envolvem expandir o alcance e diversificar os mecanismos de transação, com novos editais voltados a diferentes perfis de devedores. A PGE-SP também planeja ampliar o uso de inteligência artificial e ferramentas de business intelligence (BI) para segmentar contribuintes, otimizar propostas de negociação e prevenir a judicialização. “O uso estratégico dessas tecnologias permitirá decisões mais precisas, aumento da eficiência e uma cobrança mais inteligente, que fortalece tanto a arrecadação quanto a justiça fiscal”, afirma.

Escolhas difíceis

A disputa pelo Orçamento tem outra frente: o crescimento das despesas vinculadas ao salário mínimo. Apenas essa política, segundo a IFI, deve gerar um impacto de R$ 890 bilhões na despesa primária da União ao longo da próxima década. Isso porque o reajuste do piso salarial está diretamente ligado a aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais — e qualquer valorização real pressiona o caixa da Previdência.

“Essa escolha tem impactos significativos para a trajetória fiscal”, avalia Andrade. “Não se trata de criticar a política, mas de reconhecer que ela impõe custos elevados e precisa ser compensada de alguma forma — seja por aumento de receitas, cortes em outras áreas ou ajustes nas regras de vinculação”, pondera.

Entre as possibilidades colocadas no debate técnico estão a desvinculação do salário mínimo como base para benefícios previdenciários e assistenciais ou, alternativamente, o retorno a uma política de correção apenas pela inflação. Qualquer caminho exigirá, contudo, pactos políticos complexos e enfrentamento de resistências sociais.

Mesmo sem propor soluções fechadas — por não ter esse poder —, a IFI cita práticas que poderiam ajudar a construir um ajuste fiscal mais robusto. Entre elas, destacam-se:

  • avaliação sistemática de políticas públicas, priorizando eficiência e focalização;
  • revisão periódica de gastos (spending reviews), prática comum em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE);
  • adoção de marcos fiscais de médio prazo (medium term expenditure frameworks), que melhoram o planejamento orçamentário.

Essas medidas podem ajudar a qualificar o debate sobre o gasto público e abrir espaço para decisões mais transparentes e sustentáveis, especialmente nos estados, onde a margem de erro é ainda mais estreita.

Diante das pressões, o futuro da sustentabilidade fiscal no Brasil dependerá de escolhas difíceis e cada vez menos adiáveis. O caminho possível parece ser o da combinação entre reformas estruturais, inovação na arrecadação e uma política de gastos mais racional e transparente — tanto na União quanto nos estados.

Como resume Alexandre Andrade: “Os ajustes são difíceis porque implicam perdas. Mas, sem diagnóstico correto e convicção na condução, o risco é o colapso gradual da capacidade de investimento público e da própria prestação de serviços essenciais”.

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